À porta da barbárie

Impotentes diante da guerra, cabe-nos proteger o que conquistámos e promover o que nos humaniza e está por conquistar. Não é coisa pouca.

Numa conversa recente, um senhor na casa dos oitenta anos confessava-me a sua profunda desilusão com a guerra. Julgava que as guerras na Europa eram coisas do passado, ultrapassadas, às quais jamais voltaríamos. Acreditava que tínhamos evoluído e que já não retrocederíamos.

Tenho ouvido esta desilusão pela sensação de retrocesso ser exprimida um pouco transversalmente pelas diferentes gerações. Uns mais conscientes que outros, mas todos unidos por uma crença numa evolução irreversível da nossa condição humana.  Seguros de que a era do homo bellicus havia ficado lá atrás, sendo agora tempo de olhar com distância e incredulidade para aqueles estranhos seres que cometem atrocidades.

A madrugada do dia 24 de fevereiro veio dar um valente abanão nesta doutrina. Para a maioria, foi suficiente para derrubar um muro e destapar um espelho que nos mostra como somos os mesmos que cometem crimes contra a nossa humanidade. Mesmo assim, sobram alguns crentes devotos para quem o muro não caiu: porque, lá no fundo, os russos não são bem como nós, não pertencem ao nosso “grau civilizacional” europeu e democrático. Logo, o retrocesso do seu exército à barbárie nada nos diz sobre a nossa evolução pós-bélica.

A crença na evolução para uma humanidade pós-bélica e pós-desumana são erradas e enganosas. Porque ignoram a própria realidade humana e enganam-nos sobre o melhor caminho a trilhar para uma cada vez mais verdadeira construção da paz e do desenvolvimento humano.

A soberba democrática-liberal em recusar a sua própria condição de contingência pode significar o seu próprio fim.

Uma tomada de consciência que me parece fundamental, é o de aceitarmos e reconhecermos a fragilidade da nossa humanidade. Apesar do reconforto que resulta de nos imaginarmos como sendo antropológicamente diferentes dos agressores, devemos reconhecer que somos como eles. Temos em nós a capacidade para agir segundo os mesmos instintos, motivações e critérios. A barbárie que perpetram é obra da humanidade que partilham connosco. O que significa que vivemos, permanentemente, a um passo da barbárie. Por mais que os séculos passem, a fragilidade da nossa humanidade mantém-se intacta. Aprendemos a conviver com ela, a educá-la e orientá-la, mas não a eliminá-la. Porque não há “pontos de não retorno” no que toca à natureza humana.

Tomando como ponto de partida uma maior consciência da nossa fragilidade e proximidade à desumanidade, outras considerações importantes resultam de forma lógica. Uma delas é efetuar uma avaliação que julgue como mais admirável a arquitetura moral, constitucional e institucional que hoje habitamos. Afinal, uma sociedade regida pela lei, com transições pacíficas de poder, garantias e direitos, fundada em princípios de justiça basilares constitucionalmente definidos, é diametralmente oposta à violência e barbaridade de que somos capazes. Tudo isto que habitamos é muito mais raro e valioso do que nós, que nos encontramos no seu interior, tendemos a considerar. E é, igualmente, muito mais frágil do que reconhecemos.

Como consequência da fragilidade pessoal e social que uma guerra na Europa nos revela, duas atitudes resultam como resposta. A primeira, consiste em não interpretar de forma leviana as ambições e dizeres de quem, por motivos políticos, explora os instintos humanos mais básicos e primários, colocando em causo os princípios basilares da nossa organização constitucional e político. Devemos reconhecer que os perigos em causa são muito maiores do que tendemos a reconhecer. De forma mais próxima ou distante, é a possibilidade de “retrocesso” e destruição do que construímos que está em jogo. A soberba democrática-liberal em recusar a sua própria condição de contingência pode significar o seu próprio fim.

A fragilidade e proximidade à barbárie implicam igualmente um debate de ideias mais aberto e livre. Esta ideia pode parecer contraditória com a do parágrafo anterior, mas o equilíbrio entre as duas é possível e necessário. Ambas resultam da nossa fragilidade: se por um lado devemos proteger o que foi alcançado – proteção a jusante – por outro devemos combater a aproximação da barbárie – a montante – através do debate de ideias. Todavia, enquanto a primeira consiste numa defesa do status quo, a segunda corresponde a uma exploração livre de ideias, que se projeta sem horizonte definido. Representa o caminho para soluções e respostas criativas às exigências da justiça. Trata-se de um exercício extremamente criativo, que exige uma dialética constante entre novas e antigas ideias, na busca daquilo que mais nos humaniza. Nada garante que a melhor vencerá o debate social e político, para além da esperança na mesma humanidade capaz das maiores atrocidades. A única garantia é de que este é o caminho que mais nos humaniza.

Uma atitude sem a outra fica inevitavelmente aquém das exigências da nossa humanidade e fragilidade: seja uma proteção estática do estado das coisas que não fomente o debate livre e desenvolvimento humano, ou um debate que não seja orientado pelos princípios fundadores da ordem atual.

Reconhecer e valorizar a nossa semelhança com quem pratica as atrocidades mais brutais deve motivar-nos a cuidar daquilo que de mais precioso temos. Impotentes diante da guerra, cabe-nos proteger o que conquistámos e promover o que nos humaniza e está por conquistar. Não é coisa pouca.

Fotografia de Stijn Swinnen – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.