Serão as pessoas da minha aldeia racistas?

Há preconceitos internalizados e há resquícios de uma colonialidade que ainda afeta a nossa cultura e que se manifesta no modo como falamos, no modo como satirizamos, no modo como insultamos.

Guimarães foi recentemente palco da atenção do país, e não pelas melhores razões. Toda a gente viu ou ouviu falar dos insultos racistas por parte da claque do Vitória de Guimarães, os White Angels, a Marega, jogador franco-malinês do F.C. do Porto. Muito se escreveu sobre mais um episódio vergonhoso da realidade do futebol – que infelizmente não me parece único ou inesperado no nosso país. A (merecida) publicidade do caso deve mais à coragem de Marega, recusando ser apenas vítima dos insultos e afirmando a sua dignidade, do que à boçalidade de um conjunto de indivíduos num estádio de futebol. Estes comportaram-se como sempre. Nada de novo. Não tivesse o jogador abandonado o campo, talvez não estaríamos ainda hoje a falar do assunto.

Este assunto, e a discussão que se seguiu, levaram-me a refletir sobre a minha própria experiência e muito do que se passa nos lugares que habito.

Nos cafés e nas esquinas da padaria da minha aldeia discute-se o Marega. Não é claro para algumas dessas pessoas que o que se passou no estádio D. Afonso Henriques tenha sido um ato de racismo. Foi sem dúvida insulto, mas daí até lhe chamar racismo parece-lhes exagerado. Para os que costumam frequentar ambientes futebolísticos, o insulto faz parte do espetáculo; no estádio, as regras da boa educação são suspensas. Um jogo sem afrontas e ofensas não é um jogo vivido e apaixonado. Chamar “preto” ou “macaco” a um cidadão de ascendência africana é considerado tolerável. “São palavras sem intenção!” – dizem alguns. “Foi só uma piada!” – dizem outros. “Nunca foi racismo, será sempre bairrismo” – escreveu-se numa faixa pendurada no centro histórico da cidade-berço.

Vivo nos Estados Unidos há cerca de quatro anos, onde o problema do racismo é um assunto permanente, experienciado por muitos no dia-a-dia e abordado com frequência nos meios de comunicação, exposições de arte, contextos religiosos, ou nas salas de aula. A realidade histórica deste país, os casos de violência, a situação de empobrecimento e a criminalização maioritária de afro-americanos tornam o problema ainda mais evidente. Nos Estados Unidos, a questão da raça e da cor da pele estão na ordem do dia. Aqui é importante que nos identifiquemos de acordo com uma determinada etnicidade. Procura-se viver com um maior respeito pela diferença do outro, o que é um facto positivo. Isso manifesta-se também num cuidado crescente com a linguagem, sobretudo numa atenção aos preconceitos de que muita da linguagem quotidiana está impregnada, muitas vezes sem que as pessoas sejam conscientes disso. Essa atenção, porém, degenera não poucas vezes em ideologia, por se assumir a priori, e sem contraditório, que se vive numa realidade opressiva e que todos os espaços públicos estão saturados de discriminação. Como consequência, perde-se a liberdade do discurso, vive-se, com frequência, num ambiente de suspeita e vigilância, onde poucos se sentem livres de falar à vontade.

O oceano que separa Nova Iorque da minha aldeia ganhou maiores proporções nos últimos tempos. A distância que separa estes dois mundos parece ter aumentado. Para as pessoas da minha aldeia, eu tornei-me demasiado “Americana”. Em Nova Iorque, por outro lado, dizem-me que ainda estou ainda sob a influência de um “pensamento europeísta hegemónico”.

Há uns anos não teria sido um problema chamar “macaco” a Marega, por isso talvez a campanha do chamado “politicamente correto” esteja a surtir algum efeito. De algum modo, despertou-nos para a questão da gravidade da comparação feita pela claque do Vitória. É verdade que há muita ideologia por detrás do “politicamente correto” mas nem tudo o que daí vem é falso ou exagerado.

Pergunto-me: serão as pessoas da minha aldeia racistas? Não, não acho que o sejam. São as primeiras a abrir a porta e a servir pão e água (talvez vinho) àquele que bate à porta a pedir ajuda, independentemente da cor ou etnia. Todavia, as pessoas da minha aldeia desvalorizam (ainda) a força da linguagem. Desconsideram que as nossas palavras são sinais de um preconceito ainda enraizado na nossa forma de olhar e pensar a realidade. Menosprezam o facto de que as nossas palavras têm o poder de normalizar comportamentos que, noutras circunstâncias, seriam automaticamente rejeitados. Há preconceitos internalizados e há resquícios de uma colonialidade que ainda afecta a nossa cultura e que se manifesta no modo como falamos, no modo como satirizamos, no modo como insultamos. E é importante estar consciente disto, dar nomes às coisas. Há uns anos não teria sido um problema chamar “macaco” a Marega, por isso talvez a campanha do chamado “politicamente correto” esteja a surtir algum efeito. De algum modo, despertou-nos para a questão da gravidade da comparação feita pela claque do Vitória. É verdade que há muita ideologia por detrás do “politicamente correto” mas nem tudo o que daí vem é falso ou exagerado.

Deste lado do Atlântico, quando questiono alguém acerca do crescente ambiente de policiamento da linguagem e de uma cultura que cada vez se torna mais suscetível de ofensa, ou quando pergunto pelo porquê da proliferação de contextos safe-space respondem-me que o meu lugar de privilégio não me permite entender a realidade. Todavia, não deixa de ser estranho que num país onde se aclama a liberdade, se multipliquem os safe-spaces! É a realidade social – o out-space – assim tão ameaçadora? Este fenómeno fomenta uma cultura de desconfiança, ao mesmo tempo que dá azo a discursos separatistas.

Se as duas margens do Atlântico, com as suas experiências, dialogassem… Por um lado, talvez percebêssemos que nem todo o gesto de reprovação ou crítica é discriminação e que as ideologias, quando fechadas à realidade, conduzem a divisões que servem apenas a uma lógica de uns contra os outros. Por outro lado, talvez admitíssemos os resquícios de colonialidade que a nossa linguagem põe, por vezes, a descoberto. Na verdade, Marega abandonou sozinho o relvado. Ninguém o acompanhou. Bem pelo contrário, até o tentaram dissuadir de o fazer. Por último, resta dizer que a minha aldeia não representa um espaço geográfico em concreto, mas é uma metáfora para descrever lugares e relações que experiencio em Portugal.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.