A cultura em revista

O exercício de ler a vida e o mundo a partir da literatura e do cinema e ainda a pandemia a marcar a reflexão na secção de Cultura do Ponto SJ em 2021.

Num tempo em que os livros escasseiam nas mãos dos portugueses e os mais jovens têm apenas olhos para o que lhes passa pelo telemóvel, não deixa de ser reconfortante fazer uma retrospectiva do que se escreveu na secção de Cultura do Ponto SJ e encontrar tantos e belos textos inspirados na literatura e em obras mais ou menos recentes. Neste exercício de refletir a vida e o mundo a partir de um livro acabado de ler, o P. Francisco Martins, sj foi o mais constante e quase todos os seus artigos passaram por aí. Releia-se “Subtilezas da alma”, “A estonteante verdade da Primavera” ou “Quanto vale uma vida inteira”. Também José Cândido de Oliveira Martins trouxe a reflexão sobre a tragédia dos refugiados pela mão de Um muro no caminho, da autora Julieta Monginho. Noutro artigo, “Crónicas para ler um mundo mais humano”, o mesmo autor enuncia várias obras para sublinhar uma ideia que nelas perpassa: a importância da memória cultura e o que diz ser a “erosão dessa memória fundacional que moldou a identidade e antropologia cultural do Ocidente”. A celebração dos 200 anos do nascimento do escritor russo Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski levou também o jesuíta Miguel Pedro Melo a pegar numa das suas principais obras, Crime e Castigo, para sublinhar como “o escritor russo foi capaz de atravessar as máscaras fragmentadas e penúltimas sobre a pessoa humana e apontar para uma imagem mais desconhecida que procura encontro e redenção profundos”.

O mesmo exercício de pensar a realidade através da arte expressou-se no Ponto SJ através da apreciação de filmes e séries. Fê-lo Alexandra Esteves com “Vida(s) de mulher”, onde pega na série da Netflix “A criada” para afirmar que “apesar das conquistas alcançadas pela mulher e para a mulher ao longo do século XX, há um caminho íngreme e sinuoso que ainda terá de percorrer e que reflete alguns dos embaraços que a própria sociedade lhe coloca, designadamente a falta de solidariedade, o individualismo exacerbado, a indiferença, que, muitas vezes, se agravam quando na condição de mãe.” Fê-lo também o P. João Basto ao pegar no filme Nomadland para relançar uma pergunta fundamental: “O que é uma casa? O que é ter um lugar? O que é habitar? Ou então, em sentido teológico, o que é encarnar? ” Já João Maria Carvalho escolheu o filme de Manuela Serra “O Movimento das Coisas” para refletir sobre a importância do pão: “o pão tem algo a ver com o tempo: mordê-lo torna sempre as tardes lentas. É o melhor alimento para a fome (talvez o único que lhe responde diretamente).

Porque a vida e o mundo para além dos livros foi profundamente marcado por mais um ano em pandemia, a reflexão sobre este tema também não poderia passar indiferente aos colaboradores do Ponto SJ. Maria José Ferreira Lopes pegou no livro do Papa “Sonhemos Juntos” para sublinhar a sua mensagem de esperança: “a Covid é acima de tudo uma oportunidade de reflexão para a mudança, que Francisco usa para sublinhar o seu pensamento sobre realidades fundamentais, a que somos frequentemente indiferentes – mesmo quando não tão longínquas –, colocadas pela pandemia num plano ainda mais afastado”. Francisco, escreve a autora, refere-se “às guerras esquecidas, das privações das periferias, dos refugiados, das mudanças climáticas; mas também dos “caminhos nefastos que impedem o crescimento, a conexão com a realidade” e, sobretudo, “a entrada do Espírito Santo”: o narcisismo, o desânimo e o pessimismo.” Anabela Gradim também pega em palavras e gestos de Francisco – “Ninguém se salva sozinho” – para melhor compreender o tempo pandémico, e José Cândido Oliveira Martins fala de um “Tsunami Covid”, analisando também a forma como os media acompanharam a evolução da Covid-19.

Ainda a reler, o artigo de Alexandra Esteves que faz uma viagem no tempo para revisitar pessoas e lugares, neste caso 1899 e Ricardo Jorge, que se notabilizou no combate à peste bubónica que atingiu a cidade do Porto e, mais tarde, a outras moléstias, em particular à fatídica gripe pneumónica, que fustigou o país entre 1918 e 1920. A fechar este capítulo, o texto de João Maria Carvalho sobre Francisco de Assis e a irmã doença dá-nos uma perspetiva do tempo presente em que somos marcados pela Covid-19: “Uma doença que acontece no corpo, como todas as outras, e que exige a mesma delicadeza, a mesma paciência no trato. Não a louca quantificação, que aplica um algoritmo único aos nossos movimentos, e que tantas vezes sacrifica os redutos últimos da vida e da nossa existência, tornando fácil ignorar dores grandes, solidões vastas, ou, em poucos dias, proceder ao abate de todos os visons da Dinamarca – entre 15 a 17 milhões [1] – na recusa em aceitar que somos parte da uma só carne no mundo.”

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.