Tsunami Covid-19

Hoje mais do que nunca, nos tempos de pandemia e pós-pandemia, impõe-se pensar uma nova cultura e ecologia do humano.

Desde há mais de um ano, vivemos uma existência fortemente condicionada pela Covid-19. Identificado na cidade Whuan (província de Hubei, China), o coronavírus SARS-CoV-2 começou a provocar as primeiras infeções na Europa e no mundo ocidental em janeiro de 2020. Logo uma onda pandémica, como impressionante tsunami, alastrou rapidamente a todo o mundo.

Daí para cá, a pandemia propagou-se mundialmente, tendo motivado dezenas de milhões de infetados e mais de dois milhões e meio de óbitos em um ano, números em permanente crescimento. A surpresa do vírus e do ritmo da sua propagação, o relativo desconhecimento científico e a falta de terapêuticas eficazes, sobretudo as graves consequências para a saúde e vida quotidiana da humanidade, tudo causou uma compreensível reação inicial de alarme e de medo.

Consabidamente, à escala planetária, esta crise sanitária desencadeou mudanças muito significativas na normalidade das nossas vidas, quer no domínio pessoal, quer sobretudo ao nível do mundo do trabalho. A vida económica e social, mas também o funcionamento do sistema de ensino e o setor da cultura sofreram profundo abalo, com um vasto conjunto de consequências, algumas das quais ainda difíceis de prever em toda a sua magnitude.

Testemunhamos também o modo como os média, com destaque para os canais de televisão, acompanharam noticiosamente a evolução da pandemia ao longo de mais de um ano. E estamos todos algo cansados do excesso de informação diária, em registo de dramático frenesim. Estamos igualmente extenuados pelo cortejo de especialistas convidados para nos ajudar a compreender os aspetos mais variados do fenómeno da pandemia. Enfim, estamos todos com a sensação de testemunhar um fenómeno para o qual não estávamos preparados, com estados de emergência e de confinamentos sucessivos, de forma a responder às várias ondas da pandemia.

E estamos todos algo cansados do excesso de informação diária, em registo de dramático frenesim.

No sector da Cultura, assistimos a uma paralisação e consequente sentimento de crise. A começar pelas artes do espetáculo e a terminar na área da edição e do comércio das livrarias, os sucessivos confinamentos e restrições por motivos sanitários desencadearam um tempo sem precedentes no meio cultural. Por mais apoios que o Estado e outras instituições disponibilizem, as diversas organizações e indústrias da Cultura vivem tempos bem difíceis.

Neste contexto, é natural assistirmos à publicação de um vasto conjunto de reflexões, sob a forma de textos de dimensão variável, desde o ensaio longo e aprofundado, até à breve crónica jornalística e o comentário do blog. De facto, uma multidão de ensaístas, cientistas, filósofos, politólogos, sociólogos, médicos, virologistas, historiadores, jornalistas, cronistas, etc., sentiram a necessidade de analisar o fenómeno insólito em que todos estamos imersos. Aliás, um conjunto diverso de palavras e expressões entrou definitivamente no nosso discurso verbal quotidiano.

A título de rapidíssimo exemplo, mostram-se reveladores alguns títulos de obras, individuais ou coletivas, editadas em papel ou em formato digital, reunindo textos apostados em refletir sobre as várias dimensões da crise pandémica. Sopa de Wuhan é um desses títulos, agregando nomes tão diversos como Giorgio Agamben, Slavoj Zizek, Jean Luc Nancy, Judith Butler, Byung-Chul Han, Alain Badiou, num total de quinze autores.

Um outro volume temático, intitulado Diary of a Pandemic, é o resultado da reunião de textos antes editados no âmbito do Blog “Reflections and articles dealing with the COVID-19 crisis”. E muitos outros títulos, numa manifesta avalanche editorial:  La Vida Cotidiana en Tiempos de la Covid; Quarenta em Quarentena – 40 Visões de um Mundo em Pandemia; Epidemias e Sociedade – da peste negra ao presente; Capitalismo y Pandemia; Epidemias – Verdadeiros Perigos e Falsos Alertas; A Pandemia que Abalou o Mundo; A Torção dos Sentidos: pandemia e remediação digital; Crónicas da Peste Mansa; etc.

Pela torrente de informação, mas igualmente pelos prolongados períodos de emergência e de confinamento –, este arrastado tempo de pandemia pode gerar dois sentimentos fundamentais: primeiro, um sentimento de enorme cansaço e de continuado ruído noticioso e mediático, quase a raiar a saturação. Aqui estamos ainda no domínio do diagnóstico sobre o vivido ao longo dos últimos meses. A informação é importante, não se discute essa evidência, mas vamos assistindo quotidianamente a uma repetitiva teatralização de números e de estatísticas, de comentários e de diretos, num ritmo desorientador de vertigem.

O segundo sentimento – e muito mais importante, olhando o futuro imediato – radica na sensação de que podemos falhar o essencial. Ninguém discute a urgência de acudir socialmente aos mais necessitados, implementando medidas e programas de apoio, do governo e de ONG. Porém, pensa-se muito menos no principal, isto é, na lição ou lições a retirar desta prolongada crise.

De facto, é imperiosa a necessidade e a coragem de formular algumas questões fundamentais: o que aprendemos com as fragilidades desencadeadas por esta crise pandémica?

De facto, é imperiosa a necessidade e a coragem de formular algumas questões fundamentais: o que aprendemos com as fragilidades desencadeadas por esta crise pandémica? Numa ética do cuidar de todos no mundo em que vivemos, onde está a efetiva solidariedade entre países ricos e pobres? Estamos dispostos a atingir a humanidade de grupo na casa comum que habitamos, superando hipocrisias, egoísmos e assimetrias? Se não prepararmos um outro ritmo de vida e, sobretudo, uma nova ordem global, de integração e de hospitalidade, não ignorando o grito dos mais frágeis e do próprio planeta, então não aprendemos nada de essencial.

Por isso, faz todo o sentido a mensagem de esperança “Urbi et Orbi” do Papa Francisco neste recente domingo de Páscoa, apontando o dedo às guerras que não terminaram e aos continuados hábitos de armazenamento bélico, mesmo em tempos de pandemia, denunciando a persistência de uma “mentalidade da guerra”. Em suma, hoje mais do que nunca, nos tempos de pandemia e pós-pandemia, impõe-se pensar uma nova cultura e ecologia do humano.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.