Crónicas para ler um mundo mais humano

Na riquíssima tradição do pensamento ocidental, é necessário tempo de qualidade para as perguntas “ricas de humanidade e interrogação”, ao abrigo de uma ampla e renovada ecologia integral, na sua dimensão humana e cultural.

“Como não podemos vencer o Tempo, escrevemos textos que o desafiam a que chamamos crónicas.” Assim podemos ler na nota introdutória ao recente livro de Lídia Jorge – Em Todos os Sentidos (2020). Reúne cerca de quatro dezenas de crónicas apresentadas regularmente na rádio Antena 2 ao longo de 2019. Esta obra foi distinguida com o “Grande Prémio da Crónica e dos Dispersos Literários” da Associação Portuguesa de Escritores (APE), em 2021.

A contínua invenção do quotidiano (Michel de Certeau), sobretudo no contexto urbano, preenche o nosso dia a dia com os mais diversos acontecimentos, maneiras de fazer, consumos e práticas culturais. Pensar o fluir quotidiano, na aparente e ordinária irrelevância da passagem dos dias, e fazê-lo com atenção e pertinência, olhar crítico e beleza de escrita, não está ao alcance de muitos. “A atenção é a oração natural da alma”, segundo a conhecida afirmação de Malebranche.

Em conhecida analogia, José de Alencar e Machado de Assis comparavam o cronista ao colibri ou beija-flor, saltitando de assunto em assunto. O cronista “tem a sociedade diante de sua pena”, tudo lhe pertence, o sério e o frívolo, o útil e o fútil. Filiada na rica história da influente crónica-folhetim de Oitocentos, pela sua conhecida maleabilidade e brevidade, o género da crónica presta-se a este exercício de reflexão. O registo e representação do quotidiano conhece assim na escrita cronística de muitos autores o discurso verbal mais adequado.

É considerável a diversidade temática destas crónicas de Lídia Jorge, pelo que optamos por destacar a vertente humanista que as atravessa, enriquecida por uma cultura ampla, poder de sugestão, capacidade de inferência, a par da pulsão ficcional e poética da sua escrita. Estas crónicas falam-nos do homem contemporâneo e do mundo em que vivemos, a partir do contexto português, sempre com o objectivo de tornar a casa comum mais compreensível e habitável.

Uma ideia transversal destes textos sublinha a importância da memória cultural. Não podemos viver hoje, nem preparar o futuro imediato, praticando a erosão dessa memória fundacional que moldou a identidade e antropologia cultural do Ocidente.

Uma ideia transversal destes textos sublinha a importância da memória cultural. Não podemos viver hoje, nem preparar o futuro imediato, praticando a erosão dessa memória fundacional que moldou a identidade e antropologia cultural do Ocidente. Mostram-se muito eloquentes e simbólicas as referências à cultura e literatura clássicas, a começar com Homero ou Platão; e a continuar nos grandes clássicos da literatura moderna e contemporânea (de Shakespeare e Montaigne a Dostoievski ou Kundera). A autora fala expressamente numa “herança humanista dos gregos e do cristianismo”, que alicerça a identidade cultural da Europa.

É esta memória cultural que nos educou para fruirmos os maiores monumentos da arte e do pensamento; ou nos formou nos mais diversos valores, por exemplo para a relação com a Alteridade, num exercício de compaixão diante da “dor em face do sofrimento dos outros”. Definitivamente, não podemos prescindir desta memória multissecular sem amputar radicalmente a nossa identidade e humanidade. Os poetas têm o dom de dizer lapidarmente certas verdades e Fiama Hasse Pais Brandão resumiu esta ideia em formulação simples e definitiva: “Existimos sobre o anterior”. Pelo que é humanamente insustentável e suicida a prática de uma acelerada erosão da memória, imperativo maior de todos os projetos escolares e toda a programação cultural.

Neste contexto, faz todo o sentido a convicta defesa do livro e do seu significado histórico-cultural como “aquisição inultrapassável”, sobretudo na atual civilização marcada profundamente pela magia das tecnologias e dos novos média. O pretexto da participação numa importante Feira do Livro internacional leva a escritora a sublinhar que, mau grado todas as crises anunciadas, “o livro continua a ter um valor simbólico tão elevado. Perpassa pelas sociedades o sentimento de que, perdendo-se o valor do livro, se perde a face da Humanidade.” A cronista concebe mesmo a Literatura como “campo de reclamação do entendimento e da paz”, contra a tirania e a barbárie.

Por outras palavras, na cultura do livro (independentemente do suporte), no imaginário correspondente e nas competências associadas, radica quem fomos, somos e nos sonhamos. Numa linguagem simbólica, “o livro ainda é o nosso fio de Ariadne”. Tudo isto implica os desafios de uma estruturada política e cultura do livro e da leitura, já que educar um leitor de livros demora vinte anos. Felizmente, ainda há educadores e organizações que teimam “em manter os livros no lugar dos livros, como artefactos da imaginação imprescindíveis à nossa sobrevivência”.

Felizmente, ainda há educadores e organizações que teimam “em manter os livros no lugar dos livros, como artefactos da imaginação imprescindíveis à nossa sobrevivência”.

O grande cronista de hoje de algum modo reinterpreta a memorável máxima do dramaturgo romano Terêncio: “Sou um homem, nada do que é humano me é estranho”. Por isso, a cronista também anota que Clarice Lispector “escrevia crónicas sobre o essencial absoluto, aquilo que é invisível aos olhos e não narrável a passo de Krónos.” As cidades do futuro e o mundo que estamos a construir não podem prescindir destas ideias basilares e congeniais ao conceito de humanidade. Não há revoluções da tecnologia digital que possam erradicar, em nome de espaços limpos, inumanos e sem rosto, esses princípios antes enunciados. Não há razão sem imaginário, ciência sem arte ou progresso sem memória.

Pelo que se deixa sugerido, na aparente leveza e mestria das crónicas de uma escritora actual como Lídia Jorge, deparamo-nos com um ato essencial à cidadania plenamente exercida – a capacidade de pensar a nossa circunstância, pressupondo o elogio da lentidão (Lamberto Maffei), tão necessário para contrariar a inumana hiperatividade contemporânea, isto é, “o frémito do mundo que não nos deixa parar para pensarmos. Para formularmos as perguntas essenciais com a solenidade necessária”. Enfim, na riquíssima tradição do pensamento ocidental, é necessário tempo de qualidade para as perguntas “ricas de humanidade e interrogação”, ao abrigo de uma ampla e renovada ecologia integral, na sua dimensão humana e cultural.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.