Francisco de Assis e a irmã doença

Era um milagre que um homem assolado por dores veementes de parte a parte tivesse forças suficientes para tolerá-las. Mas a estas suas aflições não dava o nome de penas, mas de irmãs.

Conta a história que o luminoso Cântico das criaturas foi composto em estado febril, encontrando-se Francisco rodeado de ratos. Não nos devemos espantar. A vida de Francisco de Assis é uma vida assolada pela doença. Os seus vários biógrafos fazem notar que, em grande parte dos seus caminhos, Francisco estava doente.

Na Legenda Maior, São Boaventura mostra-o “doente em Siena”, “gravemente doente no ermitério de Santo Urbano”, “caído no hospício de Nocera”, ou ainda “retido num leito num ermitério dos arredores de Rieiti”.

O mapa da doença de Francisco confunde-se com o mapa dos seus trajectos, o mapa da sua Umbria, o mapa da sua casa. Pequeno entre os pequenos, diz-se que o seu corpo era frágil, e que no fim da vida os seus olhos dificilmente se abriam, invadidos por uma quase total cegueira.

O que nos deve espantar é o modo como o poverello vivia esta condição. Tomás de Celano conta na segunda Vida que escreve do Santo: “Era um milagre que um homem assolado por dores veementes de parte a parte tivesse forças suficientes para tolerá-las. Mas a estas suas aflições não dava o nome de penas, mas de irmãs”.

Há nomes que se colocam a uma distância de segurança das coisas. Felizmente, há outros que nos abrem à sua verdade. Estou em crer que a palavra irmã é o nome mais transformador que podemos dar à realidade. É esse o nome que articula toda a linguagem de Francisco de Assis. A radicalidade da nomeação conta a doença ao lado do irmão vento, do irmão sol, da irmã chuva, do irmão rato, da irmã formiga.

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Giotto di Bondone, Sermão aos pássaros

É verdade que os fios que nos ligam trazem muitas vezes nós apertados e ásperos, e há como que uma dificuldade natural em admitir que o contágio possa existir entre as criaturas.

Mas também isso nos mostra que a doença não é uma pena, uma condenação vinda de um mundo estranho, sim coisa próxima, íntima, natural. Não nos esqueçamos de que, invariavelmente, ela nos faz voltar a casa, obrigando-nos a passar mais tempo na cama, o mais doméstico dos objectos. Escreve Manuel António Pina: as pessoas têm a sua casa e a sua doença. Chamemos-lhe irmã, activando o motor que põe em marcha o nosso regresso à fraternidade, aí onde entre o corpo e a terra a distância é pouca, e tudo se afirma na proximidade.

Uma doença que acontece no corpo, como todas as outras, e que exige a mesma delicadeza, a mesma paciência no trato.

Estes tempos têm-nos feito esquecer que, ao fim e ao cabo, e para lá de todas as  novidades que a pandemia trouxe e que exigem a nossa atenção, lidamos, de modo colectivo, com uma doença. Uma doença que acontece no corpo, como todas as outras, e que exige a mesma delicadeza, a mesma paciência no trato. Não a louca quantificação, que aplica um algoritmo único aos nossos movimentos, e que tantas vezes sacrifica os redutos últimos da vida e da nossa existência, tornando fácil ignorar dores grandes, solidões vastas, ou, em poucos dias, proceder ao abate de todos os visons da Dinamarca – entre 15 a 17 milhões [1] – na recusa em aceitar que somos parte da uma só carne no mundo.

Se as circunstâncias convidam a tomar distâncias acrescidas nos gestos, elas pedem, ao mesmo tempo, um outro movimento nas palavras e no cuidado que dedicamos às dores da Terra e do corpo.

Francisco de Assis levava tempo até desejar curar-se, deixando as irmãs maleitas arrastarem-se por léguas e léguas de estrada. Mas há um momento em que um frade, seu companheiro, o convence a descansar. Francisco levanta-se de rompante e exclama: “Alegra-te, irmão corpo, e perdoa-me: olha, estou agora pronto a satisfazer os teus desejos, aceito de boa vontade escutar os teus lamentos”.

Irmão corpo, irmã doença… teremos coração, ouvidos e pulmões para palavras assim?

 

Nota: Os excertos das biografias de Francisco de Assis foram colhidos na edição das Fontes Franciscanas, publicada pela Editorial Franciscana, em Braga, 2017.

[1] A 4 de Novembro de 2020, encontrando-se uma mutação do coronavírus numa comunidade de visons, o governo dinamarquês decretou o abate de todos os visons criados no país, entre 15 a 17 milhões de animais. (https://www.publico.pt/2020/11/04/p3/noticia/covid19-dinamarca-vai-abater-milhoes-martas-apos-mutacao-coronavirus-1937941)

O autor escreve segundo o anterior acordo ortográfico.

Imagem de destaque: Giotto di Bondone: Aparição a Frei Agostino e ao Bispo Guido de Arezzo

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.