O pão dos dias. A partir do filme de Manuela Serra, o Movimento das Coisas

O pão tem algo a ver com o tempo: mordê-lo torna sempre as tardes lentas. É o melhor alimento para a fome (talvez o único que lhe responde diretamente).

El pan no sugiere opulencia; es lo cercano,

endurece con el día, como la gente.

Ramón Andrés [1]

Nas primeiras cenas do filme de Manuela Serra, O Movimento das Coisas, mãos experientes amassam, com uma pá, a farinha, dentro de um baú de madeira; juntam água quente, e esperam. Já consistente, a massa é revolvida e posta numa tigela escura, onde, lançada ao ar uma única vez, toma a forma redonda, preparada para o fogo.

O pão era o primeiro gesto da aldeia de Lanheses, no início dos anos oitenta. Vejo-o neste filme de Manuela Serra, filmado entre 1978 e 1985, num país que só de muito longe parece Portugal. Nesses anos, este era um lugar vindo do fundo da terra.

Pude ver O Movimento das Coisas numa aldeia, projetado ao alto numa parede branca, dentro de uma sala pequena e familiar, com cheiro a barro. Foi há poucos dias na Cerdeira, terra de xisto, na companhia de amigos. Quando terminou a projeção, sentámo-nos sobre as pedras quentes ao fim da tarde, e as rugas dos velhos de Lanheses continuavam pelo vale fora.

«A história do pão é uma história social, ou, melhor dizendo, uma história moral, uma crónica do que deveria ser a equidade, e, sobretudo, um relato do mundo e da sua fome, um emblema não da abundância, mas da pobreza», leio num ensaio de Ramón Andrés.

Um relato do mundo e da sua fome, repito, enquanto partilho com os amigos um pão, à hora de vésperas. O pão tem algo a ver com o tempo: mordê-lo torna sempre as tardes lentas. É o melhor alimento para a fome (talvez o único que lhe responde diretamente).

Nessas horas alaranjadas, também as aldeias me parecem feitas de pão: terras pequenas, como Belém, que, em hebraico, significa casa do pão (Beith-lehem). Jesus, o Nazareno, foi nascer a essa casa por desvios do caminho, e, ao longo da vida, a melhor palavra que encontrou para dizer-se foi o pão, «nascido entre cinzas, sobre a pedra» e «mais antigo do que a escrita», relata Predrag Matvejević [2]. Chegou mesmo a multiplicá-lo, como antes tinha feito o profeta Eliseu, que com vinte pães de cevada alimentou uma multidão.

Os gregos chamavam ao pão de cevada maza, que, segundo Hipócrates, fortalece o corpo. O médico grego – leio no ensaio de Ramón Andrés – fala ainda de outras palavras para outras espécies de pão: o de farinha integral (synkomostos), que estimula o trânsito dos intestinos, o de farinha refinada (aletón katharón), nutritivo, mas difícil de digerir, ou ainda o de sémola (semídalis), ideal para quem sente pesado o estômago.

Nos tratados de Hipócrates, o pão multiplica-se consoante os lugares e o feitio dos corpos; mas na maioria dos casos, como contam os relatos bíblicos, a multiplicação obedece somente ao número de bocas e à extensão da fome.

Na aldeia de Lanheses, filmada por Manuela Serra, a comunidade sabe que um pão não vai ao forno para ser comido apenas por um. Um pão que não é repartido mal chega a ser pão. Ali, na Lanheses dos anos oitenta, a mulher e o homem organizam a sua vida em função dessa massa de farinha e cereal. Suspeito mesmo que a sua vocação seja tornarem-se, em algum momento, pão. Se o corpo não chegar a tanto, pelo menos que os dias e os lugares estejam próximos do alimento primitivo: a cave emadeirada da casa de pedra; o rosto sulcado dos velhos; o tempo celebrado nos dedos, desfolhando o milho; os lábios tintos de vinho; as roupas sujas de farinha.

Sentar-se em roda, e dizer ao companheiro (com-panio: aquele que comparte o pão): «A tua fome, querido amigo, é um pão muito saboroso para os que caminham contigo».

 

O trailer do filme de Manuela Serra:

 

[1] Ramón Andrés, «El reparto», Pensar y no caer, Acantilado, Barcelona, 2016.

[2] Predrag Matvejević, Nuestro pan de cada día, Acantilado, Barcelona, 2013.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.