Os melros, a peste e … Ricardo Jorge

Chegados ao século XXI, em plena pandemia, subsistem resquícios do discurso do “bode expiatório”, possivelmente para esconder a incapacidade para lidar com o problema ou para contornar a urgência da reflexão sobre as suas reais causas.

Ainda mal refeita do primeiro confinamento, regressei, por força das circunstâncias, a mais um quotidiano enclausurado, que, de estranho, passou a normal, embora com outros protagonistas em cena. O espaço reservado ao cumprimento das obrigações profissionais, onde a solidão e o silêncio estão ausentes, passou a ter uma grande janela; o tempo é preenchido com a multiplicação das aulas on-line e das ligações zoom, entremeadas pelos telefonemas que viraram rotina. E os dias até correm mais céleres… De vez em quando, em momentos de distensão, dou comigo a observar bandos de passarada que, livremente, procuram alimento nos campos que se avistam da minha janela. Nessas ocasiões, reservo uma boa parte da minha atenção para dois merlos, quiçá um casal, que, habitualmente, saltitam e descansam junto ao meu ponto de observação. Decerto vêm visitar-me!… Quero acreditar que sejam sempre os mesmos e que seja essa a razão da sua presença continuada, pois, na minha mente, repetem as mesmas rotinas, pousando nas mesmas pedras e nas mesmas árvores, mas sempre atentos aos gatos que por ali vagueiam também em busca de alimento.

Ora, estes melros acabam por me levar numa longa viagem, reservada ao pensamento, que o corpo está confinado…É, afinal, o apelo da liberdade!… É uma viagem no tempo, que tenciono aproveitar para (re) visitar pessoas e lugares, fazer comparações e até tirar ilações. Desta feita, optei por recuar a 1899 e fazer uma breve visita a Ricardo Jorge. A escolha não foi ocasional, mas tem a ver com o facto de a pandemia de SARS-CoV-2, que hoje nos atormenta, ter despertado a evocação deste ilustre médico, que se notabilizou no combate à peste bubónica que atingiu a cidade do Porto e, mais tarde, a outras moléstias, em particular à fatídica gripe pneumónica, que fustigou o país entre 1918 e 1920.

Chegados ao século XIX, na sequência de avanços conseguidos em diversas áreas, designadamente nos transportes, esbatem-se as distâncias, o imperialismo europeu instala-se em várias regiões e intensifica-se a movimentação de pessoas e de mercadorias. Ora, com estas circulam também as doenças, entre as quais a temida peste bubónica. Endémica na região de Yunan, na China, que foi atingida por um grande surto em 1855, acabou por chegar a Hong Kong e, depois, por via marítima, a diversas cidades portuárias da Europa. Pela primeira vez, um surto de peste chegou aos cinco continentes, o que não acontecera com os dois grandes surtos anteriores (peste de Justiniano e peste negra).

O combate à doença foi liderado por Ricardo Jorge. No desempenho dessa função, teve que enfrentar a incompreensão e a resistência da opinião pública, contrária à aplicação de medidas que visavam o controlo da peste e seguidora da notícia, então propagada, de que o número de óbitos entretanto registado não justificava a sua aplicação.

O Porto foi a única cidade portuguesa atingida! Corria o verão de 1899. O combate à doença foi liderado por Ricardo Jorge. No desempenho dessa função, teve que enfrentar a incompreensão e a resistência da opinião pública, contrária à aplicação de medidas que visavam o controlo da peste e seguidora da notícia, então propagada, de que o número de óbitos entretanto registado não justificava a sua aplicação. Todavia, a 23 de agosto de 1899, foi estabelecido um cordão sanitário que isolava a cidade do resto do reino. Quem transgredisse as normas impostas arriscava uma pena de prisão até seis meses. É de notar que a população do Porto não foi muito colaborante no combate à doença, já que muitas famílias não declaravam os seus doentes, recusavam-se até a levá-los para o hospital e opunham-se à desinfeção das habitações. A moléstia grassou com particular severidade nas ilhas, bairros de operários pobres, que constituíam autênticos focos de insalubridade. Foram tomadas várias medidas para a controlar, que incluíam banhos obrigatórios, visitas médicas que culminavam no isolamento dos enfermos e na destruição de tudo o que pudesse facilitar o contágio, incluindo as roupas. Na imprensa portuense da época, corria o boato de que se tratava de um conluio da capital para prejudicar a cidade, rejeitava-se a gravidade da situação e Ricardo Jorge era responsabilizado pelos prejuízos económicos decorrentes das decisões tomadas. Afinal, conseguiu-se que o surto ficasse circunscrito à cidade do Porto, particularmente aos bairros mais pobres (as ilhas). A intervenção de Ricardo Jorge contribuiu, decerto, para esse resultado, embora cenários semelhantes, com surtos localizados, se tenham repetido um pouco por todo o mundo.

Esta peste, devido ao seu ponto de partida, ficou conhecida como a “peste asiática”. Na altura, tal como já havia sucedido no passado e, provavelmente, continuará a acontecer no futuro, procurou-se um bode expiatório, um responsável pela sua ocorrência e disseminação. A primeira evidência, que se afigurava clara para os médicos de então, era que a doença afetava essencialmente os mais pobres, atingindo os bairros miseráveis, onde operários se amontoavam sem quaisquer condições de conforto e de higiene; a segunda era a que não atingia toda a gente da mesma forma. Rapidamente, a peste transformou-se num argumento de uma ciência preconceituosa e racista que teimava em vingar nesse tempo, tentando impingir a ideia de que os brancos, a raça superior, estavam a salvo e que os incivilizados de pele escura ou amarela, menos evoluídos, estavam à mercê da peste. Esqueceram-se estes paladinos das pestes passadas, que atingiram os brancos, o Velho Continente…

Rapidamente, a peste transformou-se num argumento de uma ciência preconceituosa e racista que teimava em vingar nesse tempo, tentando impingir a ideia de que os brancos, a raça superior, estavam a salvo e que os incivilizados de pele escura ou amarela, menos evoluídos, estavam à mercê da peste.

Podemos, então, arriscar uma conclusão: apesar das mudanças de cenários e de contextos, há comportamentos e argumentos, supostamente ultrapassados e absurdos, que persistem e se repetem. A Humanidade enfrentou várias epidemias e teve sempre a pretensão de encontrar um culpado, fosse uma minoria religiosa, o estrangeiro, o doente ou o diferente. Na Idade Média, os judeus foram acusados de envenenaram os poços e apontados como responsáveis pela propagação do tifo; já no século XIX, os pobres foram acusados de contribuírem para a disseminação da cólera e da peste… Chegados ao século XXI, em plena pandemia, ainda subsistem resquícios do discurso do “bode expiatório”, possivelmente para esconder a incapacidade para lidar com o problema ou para contornar a urgência da reflexão sobre as reais causas do surgimento e propagação da SARS-CoV-2, bem como de várias epidemias que marcaram o século XX e os inícios do século XXI. Reconhecidamente, a ganância e a irresponsabilidade do ser humano, bem patentes, por exemplo, na destruição de certos habitats e no consequente extermínio de espécies animais, bem como na exploração desregrada de territórios onde se escondem predadores invisíveis que o podem corroer e matar!

Aproveitemos, então, para refletir sobre o tempo que passa e deixemos voar os melros, para que, no futuro, continuem a fazer-nos viajar…

 

Fotografia: Phot_a Guedes (Porto)

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.