“Ninguém se salva sozinho”

A corrida às vacinas tem de dar lugar a uma política solidária de vacinação global que ajude os países em desenvolvimento a protegerem-se, protegendo todos de potenciais mutações. Não há planeta B, ainda estamos todos no mesmo barco.

Demo-nos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados, mas ao mesmo tempo importantes e necessários: todos chamados a remar juntos, todos carecidos de mútuo encorajamento. E, neste barco, estamos todos” dizia, em março de 2020, o Papa Francisco, durante o Momento Extraordinário de Oração em Tempo de Pandemia.

O que nessa altura parecia uma abstração humanitária é hoje uma dura realidade: a 4ª vaga da Covid-19, alimentada pela variante Delta, recorda-nos que ninguém se salva sozinho e que, se a história da vida no planeta é de competição e sobrevivência dos mais aptos, o sucesso da espécie humana sobre todas as outras deve-se, como muito bem explica Harari em Sapiens (nota 1), ao facto de ter aprendido a cooperar.

Já sabemos que não “vai ficar tudo bem” e que todos os problemas sociais, políticos e económicos por resolver assim continuarão. Mas a resposta espetacular da ciência, o desenvolvimento de vacinas eficazes em tempo recorde, ficarão como um marco de colaboração e entreajuda, que só resultará se resistir à pulsão egoísta dos indivíduos, dos países e da indústria.

Mas a resposta espetacular da ciência, o desenvolvimento de vacinas eficazes em tempo recorde, ficarão como um marco de colaboração e entreajuda, que só resultará se resistir à pulsão egoísta dos indivíduos, dos países e da indústria.

É que a corrida contra o tempo que começou há quase dois anos permanece, a partir das sucessivas variantes do vírus classificadas pela OMS como preocupantes (of concern). Entre variantes “de interesse” e “preocupantes” estas últimas são já quatro. Em setembro de 2020 apareciam os primeiros casos da variante Alfa no Reino Unido (também conhecida por variante inglesa), que era 50% mais transmissível e por isso se espalhava muito rapidamente. Já antes, em maio, tinham surgido os primeiros casos da variante Beta (também conhecida como variante da África do Sul). Ambas as variantes são designadas em dezembro de 2020. A variante Gama, com origem no Brasil, é designada em janeiro deste ano; enquanto a variante Delta, que se estima seja 50% mais transmissível que a Alfa, surge na Índia em outubro de 2020, e é classificada como preocupante em maio do ano seguinte. (nota 2)

É esta variante, já presente em 104 países, que está a alimentar a quarta vaga da pandemia. Espalha-se mais rapidamente, e já é dominante em Portugal, no Reino Unido, Estados Unidos, Índia, Rússia, Singapura, Uganda e na África do Sul. (nota 3) Com consequências trágicas para países com baixas taxas de vacinação, como a Indonésia (5,49%), onde as mortes duplicaram ultrapassando as mil por dia a 7 de julho; ou a Austrália (8,4%), que quase não tinha casos e tem visto os números crescer de forma alarmante. (nota 4)

Zonas de replicação descontrolada do vírus, com baixas taxas de vacinação, oferecem a oportunidade para o seu surgimento: quanto mais casos, mais possibilidades de mutação, e mais potencial para que surja uma variante verdadeiramente perigosa, ou de “elevada consequência”.

Até agora, não surgiu ainda o tipo de variante que o CDC classifica de “high consequence”, resistente às medidas e terapias que são eficazes contra as atuais. Mas é uma questão de tempo. Zonas de replicação descontrolada do vírus, com baixas taxas de vacinação, oferecem a oportunidade para o seu surgimento: quanto mais casos, mais possibilidades de mutação, e mais potencial para que surja uma variante verdadeiramente perigosa, ou de “elevada consequência”.

Para já, e tanto quanto se sabe, as vacinas existentes são eficazes contra o desenvolvimento de doença grave relativamente à Delta. Mas continua a ser uma questão de tempo. E é por isso que ninguém se salva sozinho. A corrida às vacinas, e o “primeiro nós”, tem de dar lugar a uma política solidária de vacinação global que ajude os países em desenvolvimento a protegerem as suas populações, protegendo todos de potenciais mutações nefastas. Por enquanto, enquanto não há planeta B, ainda estamos todos no mesmo barco.

 

Notas:

1 . Harari, Y. N. (2013). Sapiens: História breve da humanidade. Elsinore.

2. https://www.who.int/en/activities/tracking-SARS-CoV-2-variants/

3. https://www.statista.com/chart/25195/delta-variant-spread-by-country/

4. https://coronavirus.jhu.edu/region

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.