Um povo que não protege os avós não tem futuro

No momento em que o SNS celebra 39 anos, é inquietante ver como, em Portugal, a pobreza ainda pesa, e muito, no efetivo acesso de idosos vulneráveis a cuidados de saúde. Portugal é o país da Europa que menos investe na terceira idade.

Há dias, celebrou-se o 39.º aniversário do Serviço Nacional de Saúde (SNS), criado pela Lei n.º 56/79, de 15 de setembro. O SNS concretiza o direito constitucionalmente consagrado de proteção da saúde, a prestação de cuidados globais de saúde e o acesso a todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica e social. Decorridas quase quatro décadas desde a sua criação, podemos afirmar que somos hoje um país mais civilizado, inclusivo, justo e equitativo. A esperança média de vida à nascença aumentou de 69 anos para 81,3 e a taxa de mortalidade infantil abaixo dos cinco anos de idade diminuiu 94% (atualmente, 4 óbitos em cada mil).

No entanto, apesar do caráter geral, universal e tendencialmente gratuito do SNS, em algumas situações, a pobreza continua a comprometer o efetivo acesso a cuidados de saúde, afetando doentes de todas as idades. Atentemos particularmente à situação dos idosos, quer pela sua especial vulnerabilidade, quer pela expressão numérica do problema.

Através do recente acompanhamento de um familiar no SNS, fui conhecendo casos de idosos gravemente doentes e suas famílias, casos reais de extrema vulnerabilidade. Vi como a pobreza pode ditar a diferença no acesso a cuidados dignos, nesta última etapa de vida de quem sonhou, trabalhou para educar os seus filhos, pagou os seus impostos, mas recebe baixas reformas. Quando os idosos estão dependentes e necessitam de cuidados continuados e de proximidade, são confrontados com a insuficiência da resposta da rede pública e os custos exorbitantes da rede privada, incomportáveis para a esmagadora maioria dos portugueses, cujo salário médio mensal líquido ronda os 887 euros (dados do INE, 2016). É preciso não esquecer ainda que, no nosso país, a percentagem de idosos em risco de pobreza é de 18,3% (dados do INE, 2016), sendo que o valor de algumas reformas mínimas se situa bem abaixo do ordenado mínimo nacional (580 euros).

É preciso não esquecer ainda que, no nosso país, a percentagem de idosos em risco de pobreza é de 18,3% (dados do INE, 2016), sendo que o valor de algumas reformas mínimas se situa bem abaixo do ordenado mínimo nacional (580 euros).

Apesar dos esforços que têm sido feitos no aumento do número de camas nas unidades de cuidados continuados, em parceria com as instituições de solidariedade social e com as misericórdias (no início do ano, eram 8200 camas no total), a resposta continua ainda a ser insuficiente e morosa, com listas de espera de longos meses (no início do ano, estavam 1.700 pessoas em espera). Por outro lado, a comparticipação da Segurança Social no pagamento dos cuidados prestados é baixa, permanecendo o custo mensal acima das possibilidades de alguns idosos e suas famílias. Assim, na falta de resposta em tempo útil, muitas famílias acabam por se ver forçadas a optar pelas soluções de recurso menos dispendiosas: colocar os familiares em lares afastados dos grandes centros urbanos ou lares ilegais, mais baratos; ou acompanhar os familiares em contexto doméstico, mesmo sem condições para o fazer, por vezes em casas degradadas e/ou sem condições de habitabilidade adequadas ao cuidado dos doentes. Em agosto, a DECO dava conta de que o apoio a ascendentes no pagamento de lares constitui 5% das causas de sobre-endividamento.

Na falta de resposta em tempo útil, muitas famílias acabam por se ver forçadas a optar pelas soluções de recurso menos dispendiosas: colocar os familiares em lares afastados dos grandes centros urbanos ou lares ilegais, mais baratos; ou acompanhar os familiares em contexto doméstico, mesmo sem condições para o fazer, por vezes em casas degradadas e/ou sem condições de habitabilidade adequadas ao cuidado dos doentes.

A permanência do idoso em casa, no seu ambiente familiar, com o apoio e afeto de um “cuidador” parece ser, à partida, a solução mais digna. Todavia, cada caso é um caso, e nem sempre esta é a melhor solução. O papel de cuidador, muito exigente a nível físico e psíquico, é frequentemente desempenhado por um familiar próximo (cônjuge idoso, filho/a, irmão/ã), ou por  pessoa contratada para o efeito. Cuidar em casa, implica a capacidade de algum esforço financeiro e de reorganização de rotinas, nem sempre ao alcance de todos. Também aqui, os idosos e familiares com recursos modestos são os mais vulneráveis. Nestes casos, surgem as interrogações: o que fazer quando não se pode prescindir do trabalho para cuidar do familiar doente? O que fazer quando a despesa com o agregado familiar (filhos a cargo e outros dependentes) aumenta e os complementos de apoio são insuficientes? O que fazer quando o orçamento não possibilita a contratação de uma pessoa que ajude a cuidar do idoso, durante o período de horário laboral? O que fazer quando a preparação para cuidar do doente é pouca ou nenhuma, e apenas se pode contar com um escasso apoio domiciliário?

A necessidade de soluções agudiza-se quando o familiar idoso perde a sua autonomia, subitamente, e tem alta clínica do hospital. Começa então “a pressão” nos hospitais sobre o doente e seus familiares para que os mesmos deixem a unidade hospitalar, libertando camas. É inteiramente compreensível este objetivo, mas o mesmo não pode ser alcançado a qualquer custo, sem estarem garantidas as condições mínimas de dignidade, segurança e saúde após a saída do hospital. Nestes casos, mais sensíveis, torna-se necessário articular esforços entre os serviços sociais do hospital e as famílias no sentido de preparar a alta. Não se verifica um “abandono” do idoso, continuando o mesmo a ser acompanhando pelos familiares. Pelo que, se aplaude a decisão adotada pela maioria do Parlamento, no início do ano, de rejeição de uma proposta dos deputados do CDS-PP e do PAN no sentido de criminalizar o abandono de idosos nos hospitais e unidades de saúde. No entanto, não se exclui a existência de situações de verdadeiro abandono e/ou negligência de familiares pelos seus idosos doentes, bem como situações de maus-tratos envolvendo familiares ou terceiros, inteiramente condenáveis, e já previstas pelo Direito Penal.

De acordo com o Relatório de Prevenção contra os Maus Tratos a Idosos da OMS, divulgado no inicio do ano, Portugal é um dos países que pior trata os seus idosos (é o 5.º pior num universo de 53 países) e o país da Europa que menos investe nas pessoas da terceira idade. Como comunidade, esta é uma situação que não podemos tolerar. Muito há a fazer neste campo, na educação e trabalho com a sociedade civil e a nível de políticas públicas, onde a área da saúde se inclui.

De acordo com o Relatório de Prevenção contra os Maus Tratos a Idosos da OMS, divulgado no inicio do ano, Portugal é um dos países que pior trata os seus idosos (é o 5.º pior num universo de 53 países) e o país da Europa que menos investe nas pessoas da terceira idade.

De acordo com dados da ONU, o envelhecimento é hoje um fenómeno à escala global e está a crescer a um ritmo acelerado. Em 2016, 8,48% da população mundial tinha mais de 65 anos de idade. Portugal é um dos países com maior percentagem de idosos (21% da população), sendo o quarto país mais envelhecido da União Europeia, de acordo com dados do Eurostat. Perante este fenómeno, coloca-se a questão de saber se o aumento do número de idosos implica um aumento da despesa pública com a saúde, que coloque em crise a sustentabilidade do SNS. Neste âmbito, existe o risco de se cair num debate ideológico, em detrimento de um debate humanista.

Olhando para os factos, verificamos que o nosso sistema de saúde está entre os melhores na relação acessibilidade/qualidade/custo per capita. O SNS ocupa a 14ª posição de entre 35 sistemas de saúde na Europa, estando o custo per capita abaixo da média da OCDE.

Por outro lado, diversos estudos, entre os quais o “Relatório Mundial de Envelhecimento e Saúde” (OMS, 2015) e o  Relatório “How can health systems respond to population ageing?“ (OMS em 2009) esclarecem que é difícil prever o impacto da idade nas despesas públicas com a saúde, mas afastam um cenário negro.  Idosos saudáveis necessitam de menos recursos de saúde e estão propensos a contribuir com a sua força de trabalho durante mais tempo. Atualmente, é possível vivermos saudáveis a maior parte da vida.

Mas, é inegável que o SNS tem que evoluir, melhorar a sua eficiência (são inconcebíveis as listas de espera de meses e anos para consultas e cirurgias, para além das listas de espera para cuidados continuados e paliativos), inovar nos serviços e respostas que oferece, nomeadamente a forma como são assegurados e prestados os cuidados continuados e de proximidade (onde se incluem cuidados domiciliários, sistemas de telemonitorização e telemedicina), sem comprometer a sustentabilidade e o efetivo acesso a todos os cidadãos.

O SNS tem que evoluir, melhorar a sua eficiência (são inconcebíveis as listas de espera de meses e anos para consultas e cirurgias, para além das listas de espera para cuidados continuados e paliativos), inovar nos serviços e respostas que oferece.

O SNS geral, universal e tendencialmente gratuito é uma das maiores conquistas dos portugueses. Não devemos abdicar dele, mas antes aperfeiçoar o seu funcionamento, colmatando lacunas e injustiças existentes, promovendo, tanto quanto possível e até ao fim, o bem-estar e a qualidade de vida de todos e de cada um. Pois, todos adoecemos. Todos vivemos o ciclo do envelhecimento, estação após estação, geração após geração. E, como lembra o Papa Francisco, os mais idosos são uma riqueza, têm a missão de “transmitir a experiência da vida, a história de uma família, de uma comunidade, de um povo”. E “um povo que não protege os avós e não os trata bem é um povo que não tem futuro”.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.