Renacionalizar o mercado da habitação em Portugal

Por isso, a história económica é marcada por ondas de especulação imobiliária. Produzindo bolhas financeiras gigantescas, este fenómeno especulativo acaba quase sempre por gerar colapsos creditícios que contaminam a economia no seu todo.

O título deste artigo suscita muitos sentidos. A um primeiro olhar pode sugerir que se propõe que a habitação seja propriedade do Estado. Embora não se possa ignorar que um dos nossos problemas é a insuficiente quantidade de imóveis na posse do Estado e das autarquias, em discussão não está a renacionalização no sentido económico bem conhecido. Desde logo por uma razão óbvia: não é possível discutir a renacionalização de algo que nunca foi nacionalizado. Bem diferente é a análise deste setor económico e das políticas e leis que o regulam enquanto mercado nacional e até internacional.

Em Portugal o diagnóstico é conhecido: faltam casas para viver. As que existem disponíveis no mercado, seja para comprar, seja para alugar, têm preços inalcançáveis para quem vive do salário, sem património ou herança avultada. A larga maioria dos mais de dois milhões de residentes que no país vivem em casa arrendada confronta-se com a insegurança habitacional, por um imperativo leonino: a fixação como regra e de facto do contrato de arrendamento com a duração de um ano. Repetindo-se as situações de sobrecarga de despesas com a habitação, muitos jovens (e até outros que há muito deixaram de o ser) são empurrados para quartos alugados ou casa partilhada. Por isso, não surpreende que 13% da população em Portugal viva em situação de sobrelotação da habitação.

Faltam casas, mas o acesso à habitação é um direito humano fundamental para a concretização de todos os outros. Por isso, podendo ser entendido como o primeiro direito, colocam-se as questões: que causas explicam esta crise, verdadeiramente uma emergência social que, ao mesmo tempo, proporciona ganhos avultados aos que têm rendas imobiliárias? Como explicar a inflação vertiginosa do preço da habitação, quando existem seis milhões de alojamentos familiares clássicos para pouco mais de quatro milhões de agregados familiares, considerando neste indicador os indivíduos que vivem sozinhos? Se a estes seis milhões de habitações subtrairmos cerca de 1.2 milhões de segundas habitações e um pouco mais de 700.000 fogos devolutos, mesmo assim a relação numérica entre habitações existentes e os agregados familiares mantém-se razoavelmente equilibrada, permitindo até interpelar a própria falta de casas acima mencionada. Como os números não podem ser descartados, sobretudo os relacionados com as dinâmicas demográficas que marcam os últimos anos do país, é necessário aprofundar a análise das causas desta emergência social, para definir escolhas políticas que possam remediar o problema.

A habitação é um bem social muito particular. Constituindo-se também como um bem público, é fundamental para a vida de cada um de nós. Condição essencial para a vida social, a sua concretização depende da disponibilidade de terra, de estradas e ruas, de transportes e dos mais variados serviços públicos. Não sendo o planeta infinito, tal espicaça ainda mais o interesse dos investidores em fazer da habitação um destino privilegiado para os seus capitais. Desde que exista segurança jurídica, todos sabem que é bem mais prudente aplicar dinheiro em negócios rentistas, como casas ou terrenos, do que em atividades produtivas, sobretudo quando elas se realizam em setores de bens transacionáveis sujeitos à concorrência internacional. Por isso, a história económica é marcada por ondas de especulação imobiliária. Produzindo bolhas financeiras gigantescas, este fenómeno especulativo acaba quase sempre por gerar colapsos creditícios que contaminam a economia no seu todo. É exemplo disso a última grande crise do capitalismo na transição da primeira para segunda década do presente século.

Para a frequência e intensidade destas crises imobiliárias concorrem também o quadro jurídico e os incentivos, nomeadamente fiscais, oferecidos aos investidores. Sublinhe-se que cada casa está “agarrada” a um lugar, por isso é imóvel. Esta característica basilar é reconhecida jurídica e economicamente. Daí que se utilize a classificação de bem não transacionável. Ao contrário de muitos outros bens, como os alimentares e vestuário, transacionáveis em qualquer mercado, incluindo os estrangeiros mais distantes, o mercado da habitação foi, desde sempre, predominantemente nacional e até local, no qual operavam vendedores e compradores vinculados pela ligação a um dado território. Porém, a captação de investimento estrangeiro e de novos residentes, nomeadamente através dos programas “Visto Gold” e Estatuto de Residente Não Habitual, alterou rapidamente as condições de funcionamento do mercado habitacional em Portugal, transformando-se a habitação num bem mercantil globalizado. Sujeito à procura por parte de investidores das mais diversas geografias, tal desencadeou uma tensão social vital entre investidores não residentes, com destaque para os detentores de fundos especulativos aplicados na habitação, e a população residente. Esta tensão produzida pelo afluxo de capital internacional ocorre num contexto de crescimento do turismo, com novas dinâmicas que se traduzem no desvio de casas para o alojamento local. Como foi recentemente noticiado e comentado nos media portugueses, a percentagem de casas alocadas ao alojamento local aumentou em todas as regiões do país. Por exemplo, segundo o jornal Público de 24 de novembro, no Algarve 12% das casas são de alojamento local, quando em 2019 a percentagem era inferior a 9%.

Sublinhe-se que cada casa está “agarrada” a um lugar, por isso é imóvel. Esta característica basilar é reconhecida jurídica e economicamente. Daí que se utilize a classificação de bem não transacionável. Ao contrário de muitos outros bens, como os alimentares e vestuário, transacionáveis em qualquer mercado, incluindo os estrangeiros mais distantes, o mercado da habitação foi, desde sempre, predominantemente nacional e até local, no qual operavam vendedores e compradores vinculados pela ligação a um dado território.

O aumento da procura internacional combinado com o crescimento do turismo, muito assente na utilização de alojamento local, quer dizer, de habitações que de outro modo estariam no mercado residencial, produziu uma inflação que coloca em risco o direito à habitação das classes populares e até de camadas sociais mais afluentes, cujos rendimentos (salariais e outros) se classificam como medianos e até relativamente elevados. Estes fenómenos são consequência direta de escolhas políticas. Inevitavelmente, estas escolhas provocaram uma crise de acesso à habitação de camadas significativas da população em todo o país, com especial impacto nas principais cidades do litoral. Constituindo-se como uma questão política e social a que ninguém fica indiferente, as respostas possíveis são distintas. A opção pelo mercado parece ignorar que o seu funcionamento nas atuais condições jurídicas não mais fará do que agravar as dinâmicas inflacionárias e socialmente excludentes. Já a opção pela habitação pública parece não considerar que a construção de habitações, desde o seu planeamento até à sua execução e ocupação, é uma empreitada demorada e sempre condicionada pelos constrangimentos espaciais, orográficos e, com intensidade crescente, ambientais. Assim, para responder à urgência imposta pela falta de casas para viver, resta a ação política orientada para a transformação súbita das condições em que opera o mercado da habitação. Esta mudança não pode ser outra que não seja a que se alicerça na regulação da procura global de habitação no país, guiada pelo princípio da renacionalização do mercado da habitação. Nesta regulação nada há a inventar, antes dever-se-á seguir os conhecidos exemplos regulatórios de outras geografias. Porque as casas devem ser para viver e não para especular, só a asfixia da dimensão internacional do mercado da habitação em Portugal, restringindo ou mesmo afastando os investidores não residentes, poderá contribuir decisivamente e em tempo adequado para dar uma resposta decente à emergência habitacional em que o país se encontra.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.