Por um compromisso global que proteja refugiados e migrantes

Nenhuma pessoa deixa de ser pessoa, porque atravessa uma fronteira. Os Pactos Globais das Nações Unidas sobre Refugiados e para as Migrações não dizem respeito aos “outros” (os migrantes e os refugiados), mas a todos “nós”.

Neste mês de junho, em que se assinalou o Dia Mundial do Refugiado, promovido pelas Nações Unidas, temos testemunhado uma sucessão de casos inquietantes (navio Aquarius, no mediterrâneo; pacote legislativo Stop Soros, na Hungria; e política “tolerância zero” com imigrantes irregulares nos Estados Unidos da América), que nos dão conta de intoleráveis violações dos direitos humanos de migrantes e refugiados, e que não poupam ninguém, nem mesmo os mais vulneráveis, as crianças.

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O Primeiro Ministro da Hungria Viktor Orban, país que criminalizou o apoio a refugiados

De acordo com dados do ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, divulgados há poucos dias, o número de migrantes e refugiados no mundo bateu novos recordes históricos em 2017, ascendendo já a 68,5 milhões de pessoas deslocadas das suas casas. Mais de metade, são menores de idade.Sabemos também que existem mais de 250 milhões pessoas migrantes no mundo, sendo este o número mais elevado de sempre.

As migrações constituem um dos grandes desafios do nosso tempo, sendo encaradas por alguns países como uma ameaça, e por outros como uma oportunidade. É neste contexto, de profundas divergências, que prosseguem as negociações dos “Pactos Globais sobre Refugiados e para as Migrações”, destinados a responder aos complexos desafios da mobilidade humana e cujos processos deverão estar concluídos até ao final deste ano. Ainda que sem o apoio da “America First” de Trump, que se retirou das negociações, por considerar estes compromissos globais  “incompatíveis” com a política migratória americana.

 

Origem e significado dos Pactos Globais 

A iniciativa dos Pactos Globais surgiu na Cimeira de Alto Nível sobre Migrações e Refugiados das Nações Unidas, de 19 de setembro de 2016, com a adoção da “Declaração de Nova Iorque” por 193 líderes mundiais, que concordaram em desenvolver dois Pactos Globais, um “Pacto Global sobre os Refugiados” (quadro de resposta abrangente aos refugiados e programa de ação que ajude a traduzir as políticas de acolhimento e integração) e um “Pacto Global para Migrações Seguras, Ordenadas e Regulares” (acordo negociado intergovernamentalmente, com o intuito de abranger todas as dimensões da migração internacional de modo holístico e abrangente). Os dois Pactos são compromissos distintos, mas complementares e interdependentes, e representarão um quadro de referência para propostas políticas e medidas práticas.

Assim, apesar de os Pactos Globais não serem legalmente vinculativos, comprometem os Estados que os subscrevem perante a comunidade internacional. Por outras palavras, não dão lugar a reivindicações formais junto de jurisdições regionais e internacionais de Direitos Humanos, tais como o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e o Tribunal Internacional de Justiça. No entanto, têm um peso político significativo enquanto compromisso assumido por todos os países membros das Nações Unidas, em conjunto com outras partes interessadas.

Atualmente, as divisões existentes entre vários países, e as diferentes visões sobre as migrações tornam particularmente desafiante e urgente que seja alcançado um verdadeiro compromisso global. Os Pactos constituem uma grande oportunidade, mas acarretam também os seus riscos. Por exemplo, é muito diferente quando olhamos para “migrações seguras, ordenadas e regulares” do ponto de vista da pessoa migrante ou do ponto de vista dos Estados. É necessário que os Pactos estejam genuinamente orientados para o bem comum, e acima de qualquer outro interesse. Caso contrário, poderão ser uma oportunidade desperdiçada, cedendo ao cinismo e indiferença, não indo muito além do atual status quo.

O Papa Francisco tem estado muito ativo e atento a este tema, e incentivado os países a prosseguirem as negociações nas Nações Unidas para os Pactos Globais, apelando ainda à sociedade civil para que se envolva e influencie positivamente todos os atores políticos e sociais envolvidos – ou interessados em participar – no processo que levará à aprovação dos dois acordos globais. Neste âmbito, foi publicado o opúsculo “Rumo aos Pactos Globais sobre Migrantes e Refugiados 2018”, que inclui três documentos: a Mensagem para o 104.º dia do Migrante e do Refugiado; 20 Pontos de Ação Pastoral; e 20 Pontos de Ação para os Pactos Globais, enquadrados pelos verbos: “acolher, proteger, promover e integrar”.

 

Uma iniciativa portuguesa

Em Portugal, o FORCIM – Fórum de Organizações Católicas para a Imigração, desejando dar resposta ao apelo feito pelo Papa, divulgou no passado dia 20 de junho, dia Mundial do Refugiado, um Manifesto sobre os Pactos Globais. As organizações signatárias (entre as quais, a Obra Católica Portuguesa para as Migrações, a Cáritas Portuguesa, o Serviço Jesuíta aos Refugiados, a Fundação Ajuda à Igreja que Sofre, a Comissão Nacional de Justiça e Paz) apresentam-se como parceiras disponíveis e empenhadas em apoiar o Governo de Portugal na prossecução dos objetivos e compromissos compreendidos nos dois Pactos Globais. Apelam ainda a que o Governo considere algumas preocupações que gostariam de ver salvaguardadas nos Pactos, entre as quais, o apoio ao desenvolvimento; o combate ao tráfico humano e promoção de canais legais e seguros para as migrações; e o apoio ao acolhimento e integração de refugiados e migrantes.

O Manifesto foi formalmente entregue ao Governo de Portugal, como contributo para as negociações e posterior aplicação e acompanhamento dos Pactos Globais, com um pedido de audiência. O texto pode ainda ser subscrito por outras organizações da sociedade civil.

Existe a expectativa de que Portugal – país com mais de 2,2 milhões de emigrantes pelo mundo -, possa ser uma voz firme, humanista e solidária, na proteção de refugiados e migrantes, demonstrando que as migrações são uma oportunidade de prosperidade e paz para todos. O nosso país pode promover o diálogo construtivo, partilhar a sua experiência histórica e a riqueza da interculturalidade, apresentando boas práticas no acolhimento e integração de migrantes, sem esquecer o importante papel desempenhado pela sociedade civil portuguesa – de que é exemplo a Plataforma de Apoio aos Refugiados.

Esta visão positiva das migrações será igualmente necessária no próximo Conselho Europeu de 27 e 28 de Junho, no qual os dirigentes europeus deverão debater as dimensões interna e externa da política de migração, incluindo a reforma do Sistema Europeu Comum de Asilo. Recusar acolher refugiados é recusar os valores da própria União Europeia, negar a sua identidade, a sua história e o seu lema In varietate concordia – Unida na Diversidade. A Europa não está unida, e tem a alma ferida.

O Secretário Geral da ONU, António Guterres elegeu justamente a união em torno da família humana como o valor essencial de convergência global. Sem união, a paz não é possível.

 

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.