Para uma teologia sensível

Com «O pequeno caminho das grandes perguntas», José Tolentino Mendonça atreve-se a fazer não uma teologia para a academia, mas uma teologia atenta às horas e aos lugares do quotidiano, uma teologia de banco de jardim.

O segundo semestre de 2017 conheceu a publicação de mais um livro ensaístico de José Tolentino Mendonça: «O pequeno caminho das grandes perguntas» (Quetzal). O livro encontra o seu lugar num corpus que se adensou entre «O Hipopótamo de Deus e Outros Textos» (2010) e um texto breve de 2016, «Corrigir os que erram». Paralela à sua poesia, esta via ensaística apresenta-se como um laboratório de ideias teológicas. Mas não se trata de um discurso teológico dirigido aos pares. Não escolhe a direção da academia. Chegará lá, mas antes será enriquecido pela inscrição num mundo mais alargado de experiências – as experiências dos seus leitores. Mas é uma forma arriscada de escrever teologia. Não só pela distância a que a colocam, apressadamente, os «profissionais» ou «polícias» da disciplina. Mas também pela proximidade de tal discurso ao amplo mercado das espiritualidades, onde abundam inúmeras receitas para alimentar o nosso narcisismo. O risco de se deixar confundir nessa profusão de espiritualidades do bem-estar e da realização pessoal é, a meu ver, um risco considerado pelo autor. O teólogo sabe que é este risco que lhe permite o encontro com as pessoas no seu questionamento interior, sem fugir ao confronto com os lugares da ambiguidade – caraterística distintiva da vida quotidiana.

Escrever é um gesto

As artes da escrita que nós, seus leitores, encontramos nestas páginas, têm uma força particular. Estes textos são artefactos de ideias. São gestos concisos e sedutores. O discurso é ecológico porque não desperdiça palavras, aproximando-se da pequena escala do nosso quotidiano.

Os textos escritos ou reescritos para este livro, desdobram-se numa metodologia reconhecível. O tópico de reflexão está, quase sempre, enunciado nas primeiras linhas. Mas não se trata do anúncio de uma tese. Recorrendo, de forma alusiva, às modalidades do texto litúrgico, diria que nessa abertura ouvimos um «invitatório», um chamamento para nos sentarmos, com o autor, num «banco de jardim» (tomo de empréstimo algumas das metáforas de José Tolentino Mendonça). Somos, assim, colocados perante algo de essencial – esboça-se o lugar, como num diário gráfico. O que se segue é expressão de uma forma de pensamento a fazer-se, sem perder a direção apontada (o autor segue a sua própria lição, tomada de uma longa tradição sapiencial: «a sabedoria verdadeira consiste em alguma coisa que se descobre na habitação do próprio caminho»).

Um livro de horas

Voltemos ao banco de jardim, de onde o José Tolentino Mendonça nos convida a olhar as «paisagens do quotidiano», o pequeno «mundo doméstico», que se torna um «continente». É, por isso, um «livro de horas». Não as horas canónicas, mas todas as horas (encontramos aí o rasto de um mestre da antropologia do quotidiano, Michel de Certeau – «o quotidiano é o que nos revela mais intimamente»). Este é um programa de leitura da «vida embaciada», que é o lugar de Deus e é o lugar do estrangeiro («não há dia nenhum em que não nos visite um anjo»), na senda de uma ética da hospitalidade. Note-se como os anjos, nas literaturas bíblicas, são tantas vezes transmissores de notícias boas (ou notícias acerca da bondade). Em muitas narrativas, tomam o lugar do outro desconhecido. São estranhos ou estrangeiros, que facilitam o acesso à surpresa de Deus. É a lição da Epístola aos Hebreus: «Não esqueçais a hospitalidade, porque, graças a ela, alguns, sem o saber, acolheram anjos» (He 13,2).

O que dá corpo a esta poética do quotidiano? As casas, o jardim, a janela, o quarto, a repetição, o gesto que planta, o modo como passamos «pela vida uns dos outros», as lágrimas (espreitando Roland Barthes: «através das minhas lágrimas, eu conto uma história»). Mas também os abraços, «essa longa conversa sem palavras». Esta experiência de contemplação, no banco do jardim, não se reduz aos objetos do ver, amplia-se ao lugar de onde se vê e ao modo como se olha (este lugar é uma forma de habitar o tempo, «que inventámos, mas nos falta»).

O tempo do repouso é o habitat do olhar. E olhar é perguntar – «quanto mais importante for a pergunta, mais precisamos de habitá-la». O silêncio é a condição para esta habitação. O repouso («o horizonte do recomeço») e o silêncio («lugar de luta, de procura e de espera»), constituem duas grandes reivindicações de José Tolentino Mendonça. Se o lugar é o silêncio, o modo é o espanto, esse estado de génese, que obriga a parar o olhar e a encostar o ouvido ao detalhe – «se encostarmos o ouvido à extensão da nossa vida ela cantará». Este pode ser, também, o método de leitura deste livro. Podemos lê-lo como uma prova de velocidade, aproveitando a fluência e a transparência da escrita. Ou podemos parar para ouvir as ressonâncias das suas sugestões, que bem podem aproximar-se daquilo que em nós e nos outros tem «ficado por escutar».

Modalidades de dizer Deus

Quanto entramos pelo livro, percebemos que se trata das palavras de um homem que fala a partir de um solo que julga arável. José Tolentino Mendonça arrisca fazer a apologia do Deus de Jesus Cristo. Mas fá-lo na demanda de um universal partilhável e não na defesa de um particularismo – lição aprendida de Paulo. Não é de uma religião da eleição que se trata, mas de uma religião da criação e da sabedoria. Nesta perspetiva, não estamos perante a imagem de um Deus que se dá no preenchimento imediato e terapêutico do que nos falta ou perturba.  Rilke reenvia-nos para o paradoxo, como lembra José Tolentino Mendonça: «para encontrar Deus, é necessário ser feliz, caso contrário corremos o risco de não respeitar suficientemente o mistério da sua ausência ardente». Neste exercício teológico, reconhece-se que «Deus não é manipulável», pois resiste a toda a descrição – se houver alguma descrição, ela será uma retrospetiva, e não prescritiva, porque que Deus é uma precedência.

José Tolentino Mendonça convida, assim, os leitores a uma operação teológica decisiva: a passagem da gramática do Deus que se impõe como uma necessidade, para as linguagens do Deus que se descobre como desejável.  Creio que o atributo de Deus mais conveniente a esta escrita será, pois, o de «Deus amigo» das mulheres e dos homens – por isso, a teologia de José Tolentino Mendonça é uma palavra sobre a amizade. Trata-se do Deus «antidestino». Revogado o Deus da fatalidade, abre-se um amplo espaço para o Deus das possibilidades: «cada ser humano é uma possibilidade de Deus».

Uma teologia à flor da pele

Nesta via, a escrita teológica de José Tolentino Mendonça é uma teologia sensível (gostaria de usar uma expressão que tem má fama: é uma teologia à flor da pele). A expressão pode ser inesperada. É que o discurso teológico vive, frequentemente, a paixão dos fundamentos, onde a metáfora de profundidade é tida por mais nobre que a da superfície. No entanto, a superfície tem qualidades que não se encontram na profundidade. A superfície é a zona de contacto, é margem de abertura ao outro, é o lugar da ferida, mas também do toque que salva.

Esta qualidade teológica torna-o particularmente atento ao instante como oportunidade. Tomo as suas palavras: «o tempo, na gramática de Jesus, é o momento como oportunidade». A atitude contemplativa, para o José Tolentino Mendonça, descreve-se nesse estar sentado «à soleira do instante». Penso que apurou esta maneira de ler a espessura do quotidiano nas parábolas dos evangelhos: as parábolas são exorbitantes, trazem a marca de uma estranheza face ao previsível. Essa novidade não dissolve o enigma que é viver –  uma vez que a própria linguagem não abandona a estranheza –, mas convida à confiança. Penso que é sobre isto que o José Tolentino Mendonça escreve.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.