22 de julho de 2011 ou o triunfo momentâneo dos porcos

Tanto ódio, étnica e politicamente motivado, é razão suficiente para jamais esquecermos que este dia existiu.

No passado dia 22 de julho assinalou-se o décimo aniversário de um dos mais trágicos e hediondos acontecimentos do passado europeu mais recente: os atentados perpetrados por Anders Breivick em Oslo e na Ilha de Utoeya. Este autointitulado “cavaleiro-templário”, que nesse mesmo fatídico dia publicou um documento contra a alegada tomada da Europa pelo islamismo intitulado “declaração europeia de independência – 2083”, vitimou, pelo seu fanatismo, 77 pessoas e provocou mais de cinco dezenas de feridos. Se no ataque na capital o alvo eram os centros de poder e eventuais transeuntes, na Ilha de Utoeya o objetivo era politicamente motivado: dirigir a sua violência para os jovens que estavam acampados nessa ilha no tradicional encontro de verão da Juventude Trabalhista norueguesa. Tanto ódio, étnica e politicamente motivado, é razão suficiente para jamais esquecermos que este dia existiu.

Tive oportunidade recentemente de, numa das mais conhecidas plataformas de streaming, assistir ao filme “22 de julho”. Este “relata” de uma forma brilhante os contornos, as motivações, a execução do plano daquele atentado terrorista, e as sequelas que um acontecimento desta magnitude pode provocar em toda uma nação e especialmente às suas vítimas mais diretas.
O acontecimento em si é já suficientemente perturbador pois um ser humano poder chegar ao ponto de matar indiscriminadamente outros é um flagelo e tem um nome, terrorismo. Indo mais fundo na questão, podemos observar até que ponto a intolerância pode chegar: alguém que, por não concordar com os ideais da sociedade aberta e plural, com a democracia representativa, com valores como a igualdade e a dignidade da pessoa humana, decide arquitetar um plano para assassinar pessoas indefesas, que têm o direito a ter ideais de vida diferentes dos seus, só pode ser considerado um louco, um psicopata ou sociopata. Este atentado foi, a todos os níveis, um ato de profunda crueldade e cobardia, e o seu autor não merece, nem pode, ser levado a sério.

Ao longo do julgamento Breivick não mostrou sinais de arrependimentos, antes parecendo que todo este sofrimento que infligiu foi um dano colateral em nome de uma “estratégia maior de purificação” da sociedade norueguesa, e quiçá da Europa.

Ao longo do julgamento Breivick não mostrou sinais de arrependimentos, antes parecendo que todo este sofrimento que infligiu foi um dano colateral em nome de uma “estratégia maior de purificação” da sociedade norueguesa, e quiçá da Europa. Foi mesmo afirmado que o mero protesto não chega, portanto seria preciso de facto avançar para a resistência, para a confrontação e violência de modo a eliminar os marxismos, a imigração e todos aqueles que defendem não fronteiras ou muros, mas pontes e convergências. Há de facto um apelo direto à luta armada, se necessário, para fazer valer os ideais extremistas, xenófobos, racistas.

Não sei se este dantesco acontecimento e o plano arquitetado por Breivick conseguiu mobilizar ou granjear apoios e o entusiasmo em setores extremistas da sociedade norueguesa ou europeia. O que é certo é que nestes últimos 10 anos os movimentos extremistas mais ligados à direita têm feito o seu caminho à escala mundial.

Movimentos mais ou menos orgânicos, mais ou menos organizados, que têm na era da chamada “pós-verdade” e das fake news encontrado campo fértil para espalhar as sementes do populismo, da intolerância, da xenofobia, do racismo, em suma, do ódio. Se há quinze ou vinte anos atrás nos dissessem que iríamos assistir à ascensão ao poder de líderes como Trump, Bolsonaro, Salvini, Erdogan, Kurz, Duterte, Morawiecki, entre muitos outros, provavelmente consideraríamos essa hipótese como muito remota. Naturalmente que os líderes acima mencionados têm diferentes índoles idiossincráticas e não podem ser colocados todos no “mesmo saco”, mas há denominadores comuns facilmente identificáveis: todos eles têm discursos de ódio (com a pretensão de colocar os cidadãos uns contra os outros, quiçá fazendo jus ao antigo brocardo “dividir para reinar”), xenófobos e intolerantes.
A verdade é que no “pós-Breivick” tem-se notado um acentuado crescimento de uma certa intolerância beligerante em determinados setores mais radicais (ou até de um modo geral), envolto num populismo muitas vezes bacoco. Basta lermos as caixas de comentários de jornais online para perceber que hoje em dia a ofensa gratuita, o destilar de ódio levianamente e a intolerância têm escalado e feito o seu caminho.

A verdade é que no “pós-Breivick” tem-se notado um acentuado crescimento de uma certa intolerância beligerante em determinados setores mais radicais (ou até de um modo geral), envolto num populismo muitas vezes bacoco

 

Qualidades ou virtudes como a tolerância, a compreensão e a solidariedade são sistematicamente colocados no fundo da escala de valores, tudo em nome de uma suposta liberdade de expressão sem reservas e a todo o custo (mesmo que essa liberdade coloque em causa a liberdade dos outros de não concordarem). E isto numa atitude de quem a todo o custo e unilateralmente afirma uma suposta superioridade moral e ética em relação aos outros que no limite são seus “irmãos”. A intolerância e o “apontar de dedos” aos “outros”, sempre aos outros e nunca a nós próprios, lá vai fazendo o seu caminho…

No outro dia, em conversa simpática de café com uma pessoa de negócios da minha terra, eram produzidas afirmações num estilo que todos reconhecemos, referindo-se a um determinado líder político, cujo partido se encontra em expansão, referindo-se que o mesmo tem razão em algumas coisas, nomeadamente em relação aos ciganos… Pois bem, tentei perguntar quais as soluções que eles tinham para esse suposto problema, e aí as afirmações perentórias começam a ceder. Resolvi então continuar o diálogo por uma via mais simples, um “caso concreto”, embora fictício claro:

– Bom, nós não escolhemos a família e os pais, certo?
– Certo, claro.
– Então um cigano nasceu num determinado contexto que não escolheu tal como qualquer um de nós, certo?
– Certo, claro…
– Então, se os pais não o colocam na escola e têm uma vivência cultural diferente dos padrões mais comuns na sociedade isso também não é culpa dele, pois não?
– Não, claro que não.
– Ok, então, tu como empresário num processo de recrutamento para a tua empresa em que concorresse um cigano e um caucasiano “normal”, a quem irias atribuir o lugar (com uma prova e um currículo exatamente iguais)?
A resposta foi a previsível:
– Bom, provavelmente atribuiria o lugar ao que não é cigano.
– Ok então conseguimos estabelecer aqui a moral da história?
– Como assim?
– Como assim? Simples, os problemas dos ciganos não dependem só deles. Dependem também da nossa capacidade de, enquanto sociedade, ir à raiz do problema, procurando integrar, educar, formar, capacitar, desmistificar e não introduzir ainda mais fatores de discriminação que nada resolvem, antes pelo contrário.

Será que cada um de nós já ponderou seriamente a possibilidade de ter tido a sorte ou o azar de ter nascido em determinados contextos que nos levariam a tomar imediatamente a auto-estrada para a exclusão e a discriminação?

 

Será que cada um de nós já ponderou seriamente a possibilidade de ter tido a sorte ou o azar de ter nascido em determinados contextos que nos levariam a tomar imediatamente a auto-estrada para a exclusão e a discriminação? Falámos dos ciganos, mas podíamos falar dos “pretos”, dos “estrangeiros”, dos “gays” e de tantos outros temas.

Sonho com um Mundo em que a cor da nossa pele, a família da qual descendemos, as opções políticas, as orientações religiosas, as orientações sexuais, o valor da casa que temos, o carro que usamos, o telemóvel que compramos e a roupa que está no nosso guarda-fatos não determinem ou não tendam a determinar muito aquilo que somos e as oportunidades que nos são concedidas. Será que é sonhar muito alto ou pedir assim tanto?

Há um paradoxo tremendo na sociedade portuguesa. Os números preliminares dos CENSOS recentemente divulgados apontam claramente que estamos a perder gente em Portugal, somos cada vez menos. Se não tivermos políticas que integrem aqueles que para Cá vêm por opção ou por necessidade – e muitas vezes vêm produzir e fazer aquilo que nós portugueses já não estamos na disposição de fazer – pura e simplesmente não teremos futuro.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.