Um continente em busca de sentido

Como podemos esperar transparência nos mecanismos de governo, se não estamos dispostos a dialogar e a pôr-nos de acordo sobre os valores que nos unem enquanto europeus?

Passaram dois meses desde as eleições europeias. Depois do choque provocado pelo valor da abstenção, o nosso país voltou rapidamente ao business as usual de um início de verão em modo de campanha eleitoral para as legislativas. O processo de escolha dos altos cargos da União, que conduziu à nomeação de Ursula von der Leyen à frente da Comissão Europeia, parece ter suscitado um interesse muito reduzido na opinião pública. Algumas críticas ao modo como estas decisões foram “cozinhadas” pelos chefes de Estado e de Governo dos 27 ainda se fizeram ouvir, mas ficaram rapidamente esquecidas entre os episódios do “circo” político nacional…

O desinteresse por quanto acontece nos gabinetes de Bruxelas e no hemiciclo de Estrasburgo contribui, paradoxalmente (ou à maneira de uma “profecia autorrealizadora”), para a falta de transparência dos mecanismos de governo da União. O modo como foi descartado, em dois tempos, o modelo dos spitzencandidaten (candidatos principais, indicados para presidir à Comissão pelas principais famílias políticas europeias, antes das eleições) é sinal deste fenómeno. Este modelo, pensado para dar clareza ao processo de nomeação do “governo” da União Europeia, não resistiu à dificuldade de cruzar os interesses das diversas correntes ideológicas com as pretensões “nacionalistas” dos Estados (nomeadamente os mais poderosos), na hora de dividir as cadeiras do poder em Bruxelas, Estrasburgo e Frankfurt. Incapaz de produzir um resultado que faça jus a todos os interesses envolvidos, este instrumento de transparência transformou-se em mais um argumento para aqueles que criticam a opacidade dos mecanismos comunitários e a sua débil legitimidade democrática.

Vemos, portanto, as estruturas da União Europeia (com a sua legitimidade) serem submetidas a uma dupla erosão: a radicalização das posturas políticas, por um lado, e o crescimento dos sentimentos nacionalistas, por outro. No entanto, parece-me que estes são apenas sintomas de um mal mais profundo. O problema que enfrenta a construção europeia não está tanto nas estruturas e no funcionamento, quanto na ausência de um projeto verdadeiramente agregador. Na verdade, como podemos esperar transparência nos mecanismos de governo, se não estamos dispostos a dialogar e a pôr-nos de acordo sobre os valores que nos unem enquanto europeus?

O problema que enfrenta a construção europeia não está tanto nas estruturas e no funcionamento, quanto na ausência de um projeto verdadeiramente agregador.

Diante dos ataques cerrado daqueles que acusam a “Europa” de ser responsável de todos os problemas, alimentados pelo crescimento, em muitos países, de partidos “eurocéticos” (que de ceticismo têm muito pouco), os partidários da construção europeia parecem incapazes de apresentar uma resposta mobilizadora, que suscite entusiasmo e adesão, deixando pairar a ideia de que a integração europeia é mais uma fatalidade do que uma escolha querida e assumida. As forças “conservadoras” (tradicional direita política) não conseguem transmitir uma ideia clara de quanto vale a pena “conservar” do projeto europeu, por outras palavras, aquilo que constitui a sua base e estrutura fundamental. Por sua parte, as correntes “progressistas” (partidos de esquerda) não oferecem aos eleitores uma direção clara para o “progresso”, que se torna assim na fuga para a frente de um vazio ideológico.

A resposta a esta situação, que certamente comporta riscos muito grandes para o futuro do projeto europeu e, a médio prazo, para o destino de todo o continente, não pode ser dada “do alto”, pelas instâncias institucionais da União ou dos seus Estados-membro. Nenhuma solução oferecida a partir do centro – do topo – será, a meu ver, capaz de devolver vitalidade a todo o corpo. Chegamos assim ao discurso das raízes, tema delicado e polémico que levou, entre outras coisas, ao abandono do projeto de uma Constituição europeia. Não se trata, principalmente, de reivindicar um reconhecimento público do papel do cristianismo na história do continente europeu e na construção da sua identidade cultural e política. Trazer o debate das raízes europeias para o terreno de uma (pseudo-)batalha cultural entre herdeiros da Cristandade e filhos do Iluminismo é impossibilitar um debate sereno e aprofundado sobre o nosso passado e porvir coletivos. É essencial sermos capazes de elaborar narrativas partilhadas (ou partilháveis) do caminhar em conjunto que dá forma ao “ser europeu”: saber de onde vimos para podermos debater seriamente acerca de onde queremos ir.

Estou convencido que uma das principais dificuldades na gestão da questão migratória que a Europa enfrenta, a famosa “invasão” de que alguns falam e que muitos temem, é a incapacidade de oferecer, coletivamente, uma identidade cultural forte e saudável, capaz de entrar em diálogo com as culturas e religiões daqueles que nos procuram. Quão importante e decisivo seria que os europeus (e não uma “Europa” teórica e impessoal) soubessem redescobrir e aprofundar a sua identidade, não para a impor orgulhosamente ao resto do mundo, mas para criar as bases de um diálogo franco e sem complexos. Porque não começar já por interessar-nos com quanto acontece na Europa de Bruxelas, pedindo contas aos nossos governantes (lá e cá) pelas suas opções e decisões?

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.