Será possível chegarmos às férias menos esgotados?

Sim, é possível (e necessário) chegarmos às férias menos esgotados. Trabalhando com mais conta, peso e medida, criando e “ordenando” momentos de lazer – enchendo-os de atividades que descansem a mente e exercitem o corpo e o espírito.

Mais um ano (letivo) chega ao fim. Olho à minha volta, olho para mim: vejo e sinto uma esmagadora ânsia por férias. Pessoas que se arrastam a tentar encerrar as últimas tarefas, corpo e mente exaustos: energia nos níveis mínimos, ansiedade e irritação nos níveis máximos. Todos os anos isto se repete. E parece cada vez pior. Porquê? Tem de ser assim? Como estar diferente daqui por um ano?

Antes de mais, uma palavra de solidariedade para os que gostavam de estar cansados de um ano de trabalho e não estão. As suas ansiedades são diferentes. O que não quer dizer que não estejam esgotados, ansiosos, irritadiços. Com toda a razão. A economia que mata é também uma economia que exclui. Mas estas palavras também se lhes aplicam: se este ano (Deus permita!) encontrarem emprego, o que fazer para chegarem às próximas férias com saúde física, mental e espiritual?

Antes de mais, uma palavra de solidariedade para os que gostavam de estar cansados de um ano de trabalho e não estão. As suas ansiedades são diferentes. O que não quer dizer que não estejam esgotados, ansiosos, irritadiços. Com toda a razão. A economia que mata é também uma economia que exclui.

Manuel Mota Freitas

Nas férias passadas li um livro interessantísssimo de Alex Pang sobre o trabalho e o lazer: “Descansar – a razão pela qual conseguimos fazer mais quando trabalhamos menos”. O essencial da sua mensagem é que devemos trabalhar menos horas por dia, dividi-las mais inteligentemente em múltiplos períodos ao longo do dia, e intervalar esses períodos com descanso (em especial pequenas sestas) e atividades verdadeiramente alternativas ao nosso trabalho que exercitem o corpo e a mente. Conseguiríamos simultaneamente ser mais produtivos e mais saudáveis (com mais energia, ânimo e felicidade). Entusiasmado, tracei planos revolucionários para os meus dias de 2017/18. Passado um ano, confesso que falhei redondamente. E logo eu, que supostamente tenho das profissões mais flexíveis.

Raras são as pessoas que podem gerir tempos de trabalho e de descanso com a flexibilidade advogada por Alex Pang (entre outros psicólogos com investigação aplicada à Economia). Embora eu acredite que o mundo laboral tende a mudar nesse sentido, a questão é o que fazer enquanto o mundo não muda. Lutar para que mude, sim; mas, em primeiro lugar, mudarmo-nos a nós próprios – mudar a forma como trabalhamos e a forma como descansamos. Para nosso bem, e para que o nosso testemunho dinamize a mudança necessária.

Se no trabalho os graus de liberdade são, em geral, (muito) limitados, já no lazer todos temos mais graus de liberdade. Há muito que pode e deve (urgentemente) ser feito, na forma como lidamos com o lazer. Parece-me que faz falta elogiar o lazer, sacralizar o lazer, e “ordenar os lazeres”.

Precisamos%20de%20valorizar%20o%20tempo%20gratuito%20de%20lazer%2FFoto%20de%3A%20CrackerClips%20Stock%20Media
Precisamos de valorizar o tempo gratuito de lazer/Foto de: CrackerClips Stock Media

O trabalho pode viciar, sobretudo quando se tem a sorte de fazer o que se gosta. Mais, na nossa civilização está estabelecido um certo culto do ‘fazer’. Parece-nos sempre que as tarefas pendentes são prementes, e por isso sempre que completamos alguma tarefa sentimo-nos impelidos para a próxima. Muitos têm mesmo sentimentos de culpa quando páram de trabalhar antes do ‘dia de trabalho’ acabar, ou quando deixam tarefas a meio no final desse dia.

Ao contrário, o lazer está desvalorizado e necessita urgentemente de ser elogiado. O lazer, ou ócio, é o contrário do negócio: são atividades gratuitas (no sentido de não remuneradas) que na sua origem (histórica e etimológica) estão associadas à escola, à cultura, ao que dá prazer e contribui para nos realizar, completar… ainda que não permita ‘ganhar a vida’. E contudo, para além do seu valor intrínseco, o lazer permite vir a ‘ganhar a vida’ melhor, no imediato e no mediato: uma pessoa descansada é mais produtiva, uma pessoa cultivada é mais produtiva, uma pessoa saudável é mais produtiva.

Ao contrário, o lazer está desvalorizado e necessita urgentemente de ser elogiado. O lazer, ou ócio, é o contrário do negócio: são atividades gratuitas (no sentido de não remuneradas) que na sua origem (histórica e etimológica) estão associadas à escola, à cultura, ao que dá prazer e contribui para nos realizar, completar…

Manuel Mota Freitas

Mais, o lazer é também sagrado. Tanto como o trabalho. Deus revela-se também, seguramente, no descanso e nos frutos que um bom descanso pode dar. Como sabiamente escreveu o P. Vasco Pinto de Magalhães sj, “só avança quem descansa”. Se existimos para amar e ser amados, como cumprir este desígnio de Deus para nós se não descansarmos, se não dermos tempo ao tempo, se não estivermos equilibrados, saudáveis, livres, disponíveis, entregues? Podemos mesmo ir mais longe: o lazer é indispensável à nossa santidade. Se alguém tem dúvidas, aproveite as férias para meditar – se ainda não o fez – a “Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate do Santo Padre Francisco sobre a chamada à santidade no mundo atual”: todos somos chamados a ser bem-aventurados, pacientes, mansos, alegres e com sentido de humor… enfim, felizes à maneira cristã, férteis na relação com os outros, ou seja, santos. Como ser assim sem trabalhar ‘tanto quanto’ e descansar ‘tanto quanto’? Quando no capítulo V da Exortação o Papa insiste que a vida cristã é uma luta e um discernimento constantes, eu vejo, entre outros, o discernimento sobre quanto e como trabalhar, quanto e como descansar.

Se não há felicidade (santidade) sem lazer, nem todo o lazer promove a felicidade (santidade). Nem todo o lazer é igualmente eficaz, igualmente fértil, igualmente humanizador. É necessário “ordenar os lazeres”.

Como aproveito os tempos de lazer? Mantenho-me sentado em frente ao mesmo computador em que trabalho? Vejo mais um episódio (possivelmente repetido) de uma série que me anestesia e quase nada me ensina? Ligo-me a uma rede social para saber as últimas notícias ou entrar numa qualquer troca de argumentos? Telefono a alguém para saber novidades ou contar algum episódio de terceiros? Faço qualquer outra coisa que verdadeiramente não descansa a minha mente, não descansa nem exercita o meu corpo, nem exercita o meu espírito?

Se existimos para amar e ser amados, como cumprir este desígnio de Deus para nós se não descansarmos, se não dermos tempo ao tempo, se não estivermos equilibrados, saudáveis, livres, disponíveis, entregues? Podemos mesmo ir mais longe: o lazer é indispensável à nossa santidade.

Manuel Mota Freitas

O bom lazer melhora a relação comigo mesmo, com os outros, com o mundo, e com Deus. Necessitamos de momentos a sós que sejam de reflexão e encontro, mas não de evasão, auto-suficiência, ou ilusória auto-ajuda. Necessitamos de conhecer pessoas, de ter boas conversas e refeições partilhadas, que permitam troca de pontos de vista e aproximação, mas não alimentem vaidades, dependências ou maledicências. Necessitamos de passeios e exercício físico na natureza, inspirando ar puro e absorvendo a fantástica energia e beleza deste mundo. Necessitamos de boas leituras, de ouvir boa música, de conhecer sítios novos, de admirar os feitos da humanidade, seja na aldeia em que sempre passamos férias, seja na descoberta de outra civilização. Necessitamos de momentos de oração, seja em silêncio contemplativo ou meditativo, seja a saborear e agradecer tudo o que nos rodeia. Necessitamos de descansar corpo e mente, e de exercitar corpo e espírito; só assim poderemos estar menos esgotados quando o próximo ano de trabalho estiver a chegar ao fim.

 

Foto de capa: Frankies – Shutterstock

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.