A esperança tem sido colonizada pela autoajuda, quase reduzida a um final feliz, como quando voltamos a casa. Mas, a esperança terá de ser, acima de tudo, a esperança daqueles que não regressam a casa, daqueles que não têm casa, daqueles que não têm hipótese de obter recompensa. A esperança inversa ao triunfo. A esperança que conserva o enigma. Não ligeira. Não repetitiva. Não amena. Não fácil. Sem presunção. Sem cinismo.
Em 1886, George Frederic Watts terminou um quadro chamado, precisamente, Esperança. Nele, uma figura feminina dobrada, de olhos vendados, toca uma lira, onde todas as cordas se quebraram, à exceção de uma. Muitos argumentaram que Desespero seria um título mais adequado, mas Watts esclareceu que “a esperança não precisa de significar expectativa”, ou melhor, não precisa de comportar a sensação de que algo emocionante ou agradável vai acontecer. Poucos anos depois, em 1903, Picasso usaria o modelo de Watts para pintar o Velho Guitarrista Cego. Mas desta vez, o instrumento – a guitarra – não chegava a possuir sequer uma corda. Estava despida. Ainda que as mãos do músico, os gestos, a face, nos distraíssem desse vazio. Olhamos e é como se aquele homem de vestido azul, roto e rasgado, continuasse ali a tocar sozinho.
Por isso, talvez a primeira conversão necessária à apreensão da esperança seja a viagem da expectativa à graça do presente. Pois, se Paulo esclareceu que uma “esperança que pode ser vista não é esperança” (Rom. 8, 24), o mais difícil de ver é o dom do que resta: a corda sobrevivente no quadro de Watts ou a madeira nua no quadro de Picasso. Porque, afinal, a esperança terá sempre que ser algo “contra toda a esperança” (Rom. 4, 18), ou seja, contra toda a esperança caricaturada e autocentrada. E para se tornar “a última a morrer”, terá sempre que ser aquela que demora a nascer.
Talvez a primeira conversão necessária à apreensão da esperança seja a viagem da expectativa à graça do presente.
Vista desta perspetiva, a esperança parece assemelhar-se a um conformismo. Mas esse equívoco é esclarecido quando Etty Hillessum comenta que “mesmo que só nos reste uma rua estreita, por onde teremos de caminhar, por cima da rua existe todavia o céu inteiro”. Por isso, a esperança não equivale ao conforto da rua estreita, como não equivale ao recuo ou à abertura de um portal mágico no seu termo. A esperança é o alargamento da estreiteza: o espaço completo. A esperança é a recusa da parcialidade. E se essa parcialidade é uma forma de egoísmo, o que há-de resgatar-nos é essa ferida rasante da completude. Não sem razão, Rosenzweig sublinhou que a esperança é a força que nos mantém dentro do Mundo. Mas se o Mundo não pode ser possuído, esperar é, acima de tudo, aceitar que não há garantias. Pelo menos à nossa medida.
Depois de vermos o Stalker (1979), de Andrei Tarkovsky, percebemos que apenas os fracos sabem como esperar, porque a esperança é, sobretudo, acolhimento. Daí que importa perguntar: se “enquanto há vida, há esperança”, que tipo de vida é que é capaz de a suportar?
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.