Retrato do Esposo

Pedi-lhe que me desenhasse o retrato daquele que ela via. Que o fizesse com palavras, porque, tal como lhe expliquei, sou razoavelmente medíocre em perceber quadros que não os das palavras.

Como quem recolhe uma lâmpada ao fechar os olhos.

Foi esta a resposta que me deu, quando lhe perguntei de que modo ela o olhava. Uma resposta demasiado magra, nada técnica, é verdade. Mas, devo dizer-te, outro modo nem eu esperava, nem eu queria. É que não falávamos ali de um qualquer homem.

Bem sabes, creio eu, que quanto mais amamos alguém, menos lógicas e sintéticas são as descrições. Não chega o evidente. Ou podes falar daquele olhar (esse mesmo!) sem pensar em luz? Repara que não. O que aqui nos importa, se amas esses olhos que descreves, não é a cor, mas a luz. E nota também como a inteligência se expande, como vai além do óbvio: reconheces uma luz que lhes é interior, que não é física nem teórica. É uma luz sem origem clara que só tu descobres. Se me permites brincar com as palavras, digo-te então que é uma luz obscura, uma espécie de nevoeiro nítido. Estranho? Sim. Habituemo-nos.

Pois bem, era assim que ela o via. Via-o nessa clareza obscura. Compreendi: para o ver assim era preciso mais. Era forçoso dilatar o afecto até que o coração se estendesse à inteligência.

Pedi-lhe que me desenhasse o retrato daquele que ela via. Que o fizesse com palavras, porque, tal como lhe expliquei, sou razoavelmente medíocre em perceber quadros que não os das palavras. Numa firmeza tímida, começou o retrato.

Mãos de semeador que conhece o silêncio do campo em pousio.

(O silêncio aguarda que chegue a primavera, hora oportuna à graça lançada em sementeira.)

É das mãos que ele lança a primavera. Ainda antes das sementes, fiou-a em novelo no coração do inverno. Entrançados gestos de um silêncio que conhece tempos e ritmos. Abrir-se-á em festa no tempo das cantigas.

Mãos de uma dança suave. Capazes de colher doçura das silvas amargas. Capazes de amigar espinhos e abrandar durezas.

Os pés são a manhã dos caminhos. Rasgam o chão virgem. Os pés vão à frente dos caminhos, revolvem a poeira, dispersam-na ordenada e grávida de destinos.

Pés de pai que ensina os primeiros passos trémulos.

Os pés são degraus que baloiçam. Subo-os e peço-lhe as mãos, como criança que brinca levada nos passos do pai.

Ele é firme como árvore plantada. Tem o silêncio de botão em queda – um modo de dizer que os puros verão a flor quando o botão se desprender do caule, que há uma luz em primavera enxertada na morte.

Árvore paciente, nobre, sacudida até à nudez. E aqueles que a despiram hão de sentar-se à sua sombra.

Ele é a árvore que nos olha até florirem os nossos olhos.

A este ponto, ela desprendeu dos lábios um silêncio lúcido, eloquente como a pausa em que a música respira. Foi um silêncio persuasivo, lavado em ternura como estava o olhar. Um silêncio que atira dos lábios quietos o único nome irreprimível como uma palavra viva, como um gesto mal lançado que foge a qualquer trajetória predefinida.

Um nome a quem não sou digno de desatar a correia das sandálias.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.