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A ideia sobressaltou-me o coração. Estava sentado a tentar escrever há horas e a tempestade de ideias não queria passar para o papel. Confrontado com o meu limite naquelas páginas em branco, dei lugar à dúvida e ao desespero. Porque é que Deus não me tinha dado o dom da escrita? Por que razão tinha de ser sempre assim tão difícil? Não podia simplesmente colocar-me tudo nas mãos? Fazer-me perfeito?
As perguntas revolviam-me as entranhas e pesavam-me no peito. Mas a verdade é que Deus tinha escolhido fazer-me lento, pequeno, inacabado e vulnerável. Uma criatura amada, mas condenada à condição humana sinónima de limite, fragilidade, imperfeição… de pecado. Deus dava-me tudo e, no entanto, como era possível Ele se ter tirado, afastado, escondido, ferido e abandonado? O meu coração recusava-se a aceitar aquela realidade. Deus tinha dito que não. Não a dar-me já aquela vida prometida. Ou, então, por algum motivo, para me dar vida, Deus tinha-me dado também a escuridão, a dor, o vazio e o deserto.
Lembrei-me do meu pai. Um dia falou-me no desejo de ir até ao Sahara. Não para ver as dunas e os areais pintados de ruivo. Não para ver de relance a promessa de um qualquer oásis perdido. Mas sim para ver as estrelas. Aqueles salpicos de luz numa tela tingida de negro. Um céu que só ali, rodeados pela escuridão absoluta, se tornava visível. O universo longínquo e inalcançável à distância de um olhar. Naquele desejo, o meu pai ensinou-me a busca, a procura por algo maior que eu, o caminho do deserto.
Deus é esse céu estrelado. Ainda longe, mas cada dia mais perto. Sempre presente, mas tantas vezes invisível aos olhos. Quando estou ofuscado pelo sol na pressa dos dias e da rotina que me consome, e me faz esquecer de virar os olhos para cima, ao chegar a noite. Quando as nuvens de preocupações, medos e preconceitos fecham o céu e o meu coração. Quando o barulho das luzes da cidade e das seguranças a que me agarro prometem que a escuridão não existe e substituem a beleza das estrelas.
Deus que só consigo ver quando vou ao fundo, quando entro dentro da minha própria tristeza, das minhas feridas, da minha dor e do meu deserto. Aquele lugar escuro, vazio e árido que me habita. Aquele lugar onde o silêncio é insuportável. Aquele lugar do não de Deus onde Ele nos mostra o seu grande sim, onde Ele se revela e enche o breu com os sinais da sua presença. E essa é a beleza que nos é dada a viver agora. Não é toda, mas é a possível. A graça que é possível pela fragilidade, pela consciência de que não somos absolutos e suficientes, que dependemos de algo que não possuímos e queremos encontrar. A sede que experimentamos quando penetramos neste espaço paradoxal, traduz-se nessa busca por Deus, pelo infinito que só se desvela quando aceitamos a nossa pequenez e somos capazes de esperar confiados que um dia vamos ser também parte desse céu. Um Deus que se desvela no deserto, na fragilidade, na condição pecadora que somos.
A graça que é possível pela fragilidade, pela consciência de que não somos absolutos e suficientes, que dependemos de algo que não possuímos e queremos encontrar. A sede que experimentamos quando penetramos neste espaço paradoxal, traduz-se nessa busca por Deus, pelo infinito que só se desvela quando aceitamos a nossa pequenez e somos capazes de esperar confiados que um dia vamos ser também parte desse céu. Um Deus que se desvela no deserto, na fragilidade, na condição pecadora que somos.
Mas da mesma forma que o meu pai não queria ir ao deserto para ver a escuridão, mas sim as estrelas, também Deus não nos dá o deserto para que ele seja um fim em si mesmo, mas uma oportunidade. A escuridão não se pode tornar mais importante que as estrelas. A dor não se pode tornar mais importante que o amor. Não ter medo da imperfeição, mas não ficarmos retidos nela quando sabemos que nem sempre nos faz bem. O espaço perfeito para encontrar Deus pode-se tornar o nosso maior inimigo se não soubermos confiar. Se fechados, caminharmos virados para nós próprios, de olhos postos no chão, controlando cada movimento dos nossos pés, em vez de levantarmos o olhar, sem saber para onde iremos dar o próximo passo.
De repente, as páginas em branco sobre as quais chorava, falavam-me de Deus e naquelas horas a fio que imaginava perdidas, nelas surgiu este texto. A arte também é isso. Não querer tomar o lugar do Criador, mas de criatura em busca de algo maior. A arte não pode ocupar o lugar da criação, porque tudo o que faz é incompleto perante o mistério de Deus. Assim, deve partir da sede interior, dessa inquietação de querer habitar o mundo e entender as suas contradições. Não da posição daquele que tem algo a ensinar e que se acha possuidor da beleza, mas sim daquele que a procura. A arte é a forma de exprimir esse longo caminho. A alegria, a euforia, o encanto, mas também as dores, os silêncios, os erros, a lentidão e a nudez da vida.
Se também no processo artístico nos entregarmos a Deus com confiança, assumindo a nossa condição de seres incompletos, que por vezes acertam e outras erram; se deixarmos que o processo seja uma descoberta e não a concretização de um plano perfeito, se encontrarmos na nossa limitação o âmago humano que conta a nossa história de busca, então poderemos ver as maravilhas de Deus a dar frutos pelas nossas próprias mãos.
Se nos deixarmos levar embalados nas mãos de Deus, então as notas musicais tocadas ao lado transformam-se em jazz, o rabisco sujo na tela num quadro de Pollock, uma “branca” na memória em palco num espetáculo de improviso, uma brecha na parede uma porta para um novo mundo.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.