Não sei quando é que a moda começou, mas sei que há quase 30 anos — sim, os meus filhos já começam a estar mais perto dos 30 do que dos 20… — comecei a ouvir definições monárquicas para identificar as crianças. “O meu príncipe” e a “minha princesa”, diziam algumas mães nas reuniões do pré-escolar.
São expressões que além de servirem para designar, servem também para comparar — “está vestido como um príncipe” ou “parece mesmo uma princesa”. Sim, os nossos filhos são os maiores, os melhores, os mais inteligentes, os mais divertidos, os mais queridos, são tudo, mas… serão também os mais compassivos, os mais misericordiosos, os mais empáticos, os mais solidários?
É porque quando eles são “príncipes” e “princesas”, quando são os maiores, rapidamente perdem a noção da realidade e nós, os pais, deixamos de ter uma perspectiva imparcial sobre eles — nunca temos, é certo, mas podemos tentar —, e achamos que estão acima de todos os outros e não ao mesmo nível. Estamos a criar narcisistas.
Em casa, nunca tratámos os nossos filhos com títulos nobiliárquicos — somos republicanos e “o meu Presidente” ou a “minha primeira-ministra” também nunca foi uma opção —, mas admito que, tal como os outros pais, sempre tivemos dificuldade em ver o que os professores viam na escola, quando os miúdos se portavam mal. “Eles em casa não são assim”, dizíamos aos professores.
Só que, profissionalmente, eu escrevia sobre educação, ouvia os professores constantemente a queixarem-se não só dos seus alunos — cada vez mais mal comportados, cada vez mais desatentos, cada vez com piores resultados —, mas dos seus “paizinhos” (era assim que os docentes chamavam aos encarregados de educação, provavelmente ainda lhes chamam assim). Na altura, escrevi “A minha sala de aula é uma trincheira”, livro para o qual ouvi mais de uma centena de educadores de infância e professores do básico e secundário sobre o seu trabalho.
Além destes, também ouvia especialistas em educação e estes aconselhavam a ficar sempre do lado dos professores. E assim fazíamos em casa. Se os professores se queixavam do comportamento, eu e o pai repreendíamo-los; se os resultados académicos não eram os melhores, eu e o pai tentávamos incutir melhores métodos de estudo. Era horrível para eles porque, por vezes, as queixas eram injustas, mas nunca nos ouviram uma palavra sobre os docentes (só muito mais tarde, quando cresceram, lhes demos razão em alguns episódios, não em todos!). “Os pais dos outros não são como vocês, a mãe do x foi à escola defendê-lo”, ouvíamos então.
A questão é que alguns desses pais que iam à escola estavam a criar “príncipes” e “princesas”, e nós estávamos a educar futuros adultos que tinham de ser responsáveis pelas suas acções; que, um dia, seriam cidadãos a viver numa sociedade, a trabalhar numa empresa, e não teriam os pais a defendê-los dos maus, a falar mal dos maus, a ir ao local de trabalho ralhar com os maus. Estávamos a preparar futuros adultos que teriam de lidar com injustiças, com dificuldades, que não poderiam desistir, amuar, chamar nomes ou vingarem-se.
E os “príncipes” e as “princesas” aí estão. Cresceram umbiguistas, são incapazes de discutir uma ideia porque acreditam que têm sempre razão, são incapazes de lidar com a adversidade, à menor dificuldade vão para Bali autodescobrir-se, são indiferentes ao que se passa à sua volta. E eles aí estão, são “reis” e “rainhas” que chegaram à idade de votar, que se identificam com o que conhecem, líderes que amuam, que não reconhecem quando perdem, que se vingam quando ganham, que “querem, podem e mandam”, indiferentes a tudo e a todos.
São “imperadores” e “imperatrizes” que olham para o mundo sem empatia, indiferentes se não há casas, pão, saúde, educação e justiça para todos. O importante é que não tenham de pagar mais impostos. Tal como Maria Antonieta, quando se lhes diz que há quem não tenha pão perguntam-se por que não comem então croissants.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.