Justiça e busca de Deus

A justiça será sempre um dom a acolher; podemos criar as condições para que ela seja acolhida e cresça, mas não a criamos nem a fabricamos.

Comecei a ser feliz sem Deus aos doze anos. Desde os cinco anos que sonhava com mudar o mundo, provavelmente devido à experiência de crescer num bairro pobre e violento dos subúrbios de Lisboa. Fui testemunhando, em primeira mão, a degradação humana provocada pela espiral da marginalidade, e só a estabilidade familiar e um grande amor pela leitura me impediram de aderir a um estilo de vida mais «típico» do meu contexto. Todavia, o contexto acabaria sempre por fazer os seus estragos.

Rápida – e precocemente – deixei-me seduzir por Nietzsche: deus é ficção dos fracos; sê forte e vence. Para quem cresce num bairro onde tudo é conflito, e em que o cristianismo parece pouco mais que sentimento oco, esta mensagem enraíza-se facilmente. Cinco anos mais tarde, aos dezassete anos, à medida que me fui interessando cada vez mais por arte, literatura, música, amizades cúmplices e pelo “belo sexo”, a mensagem de Nietzsche estilhaçou-se: nós procuramos mais do que meramente sobreviver ou vencer sobre o outro. Segue-se um encanto inicial por visões marxistas, num périplo que encontra porto de abrigo no liberalismo.

Recém-chegado ao curso de Direito, entreguei-me com prontidão à boémia universitária, entre festas e eleições para a Associação Académica, numa rendição de tal maneira incondicional que fez com que a minha prestação como estudante se reduzisse a um mero cumprir de calendário. Após alguns anos de militância partidária, chego à derradeira crise de convicções e a uma forte intuição: não há sistema, ideologia ou política à “prova de pessoa”. Nem as ideias nem os programas mudam o mundo: só as pessoas o podem mudar.

Esta convicção pede um olhar honesto e realista sobre a Humanidade: reconhecer a dignidade do homem implica exaltar as suas virtudes e reconhecer as suas fragilidades, isto é, implica um confronto, um assumir do contraponto entre o nosso desejo de bem e a nossa permeabilidade a sermos corrompidos.  Faltava-me então a palavra para esta intuição. Mas hoje conheço-a bem: conversão. A conversão não se dá por amor a uma ideia, pois estas são desprovidas de vida própria; só por amor a algo vivo se pode dar a conversão.

Pode-se contribuir para um mundo mais justo com as nossas práticas. Mas só a conversão a algo que desafia constantemente as nossas expectativas pode despoletar e manter a dinâmica de um processo de justiça. No hemisfério norte ou no hemisfério sul; num regime laico ou numa teocracia; numa sociedade abastada ou na mais deplorável pobreza; rodeado de amigos ou esquecido por todos… mesmo encerrados numa prisão, como Bonhoeffer na Alemanha Nazi ou Nguyen Van Thuan no comunista Vietname, ou vítimas de ações judiciais, como as Irmãzinhas dos Pobres nos democráticos e capitalistas EUA, a dinâmica de justiça, alimentada por um processo de conversão, perseverará.

A conversão não se dá por amor a uma ideia, pois estas são desprovidas de vida própria; só por amor a algo vivo se pode dar a conversão.

Todas as teorias humanas estão condenadas a falhar: o contrato social é uma ficção débil; o liberalismo deriva em individualismo; os marxismos e seus derivados estão envenenados pela mesma conflitualidade que denunciam; o capitalismo reverte-se em práticas depredatórias. Tendo os seus méritos, que nos podem servir de apoio e de luz, no final, todas estas correntes desumanizam: lidam com ideais que exigirão que uma qualquer pulsão totalitária – forte, como uma ditadura; suave, como a sociedade de consumo – assuma o controlo da sociedade.

O que sobrou deste caldo de ideias que foi sendo a minha vida? O que foi derrotando, pouco a pouco, visões niilistas, marxistas e liberais? Um facto simples: o meu desejo. O facto de que nós somos atraídos por algo que vai além dos nossos apetites de vencer ou de emancipar-nos, da nossa necessidade de afirmação ou de poder. A procura do bem, da verdade e da justiça leva-nos a um movimento de rendição, de entrega da vida. E a maior alegria chega quando reconhecemos que esta atração tem como objeto Deus, tal como foi revelado em Jesus Cristo. Só quando, aos vinte e cinco anos, me encontro com os escritos de João Paulo II e Bento XVI, descubro o verdadeiro porto, que não de abrigo, mas sim de partida.

A minha frenética busca por mudar o mundo sem Deus não me impediu de ser feliz. Mas somente porque, não o reconhecendo, era a Ele que continuava a procurar incessantemente, ainda que fora da Igreja e da crença em Cristo. Que outro nome poderá ter a Verdade, o Bem e a Justiça que não seja Deus? Se forem mera convenção humana, não se explica a sua presença em todas as culturas; se forem mera convenção humana, não merecem que eu arrisque a minha vida. É a história da humanidade, escrita nos livros e inscrita no coração de cada um, que desmente o lugar comum de que os valores não são mais que convenções.

A justiça será sempre um dom a acolher; podemos criar as condições para que ela seja acolhida e cresça, mas não a criamos nem a fabricamos. Quando Cristo nos desafia a converter-nos e a acreditar no Evangelho, ele abre-nos a via de uma vida digna, desafia-nos a construir um mundo de justiça e paz, numa felicidade que não é refém de um contexto ou da situação em que nos encontramos. Isto não impede a cooperação e o diálogo com outras crenças e mundivisões. Mas em honestidade clara e desempoeirada, de quem crê que a justiça é mais que um exercício estatístico ou um regatear de direitos e deveres.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.