Grande Seca – Manual de sobrevivência para tempos de deserto

Como se faz para que a vida continue, mesmo quando as circunstâncias, exteriores ou interiores, não são as mais favoráveis? Sem receitas mágicas, aqui ficam algumas gotas para viver em tempo de deserto.

Não chove em Cabo Verde há quase três anos, mas é impressionante a resistência deste povo. Com a pouca água que o Céu dá e aquilo que, com custo, consegue cultivar, cá vai vivendo com relativa tranquilidade. Mesmo aqui, em Santo Antão, onde a vegetação é habitualmente mais exuberante, a cor castanha das montanhas e o verde tímido das plantas revela a sede da terra a desejar ser regada. Não é a maior seca, dizem. Nem será, certamente, a última.

É assim! Aqui, como na vida, existem tempos de seca. Os que passaram por isso de uma forma mais dura falam de deserto, de noite escura, de não sentir, de secura espiritual. Alguns santos foram especialistas. João da Cruz, Teresa de Ávila, Teresa de Lisieux, Teresa de Calcutá, só para citar alguns exemplos bem conhecidos. Todos relatam a experiência da secura, nalguns casos de forma muito sofrida e prolongada.

Mas todos nós, mesmo que sem a intensidade dolorosa dos santos, já vivemos momentos de maior aridez e deserto. Rezamos e não sentimos (às vezes nem nos apetece rezar); tentamos falar com Deus, mas não lhe ouvimos a voz; procuramos e não encontramos um sentido para o que nos acontece; gostávamos de saber o caminho com clareza, mas os sinais são insuficientes e incertos; queremos semear e colher crescimento, mas não vemos logo o fruto todo a acontecer. Num momento ou noutro, com duração mais ou menos prolongada, com maior ou menor intensidade, todos vivemos momentos de secura existencial e espiritual.

Num momento ou noutro, com duração mais ou menos prolongada, com maior ou menor intensidade, todos vivemos momentos de secura existencial e espiritual.

Para não desesperarmos nem desistirmos seria bom perguntar o que torna possível a resistência quando o tempo é de seca. Como se faz para que a vida continue, mesmo quando as circunstâncias, exteriores ou interiores, não são as mais favoráveis? Sem receitas mágicas, aqui ficam algumas gotas para viver em tempo de deserto.

1.     Usar as provisões ou recorrer à memória

Um dos hábitos mais comuns em tempo de seca é o de recorrer às provisões acumuladas nos tempos bons. Quem nesses tempos tem a capacidade de guardar alimento pode agora usar esses recursos. Por isso, na vida espiritual é fundamental o dom da memória. A experiência de Deus e do encontro verdadeiro com Ele deixa na vida marcas indeléveis que nem a secura espiritual pode apagar. Impressionam, por exemplo, os cerca de trinta anos que Madre Teresa viveu de deserto interior. Só alguém com a marca profunda da vida com Deus seria capaz de resistir tanto tempo em circunstâncias tão duras, sem abandonar todos os compromissos assumidos.

Em tempos mais difíceis é necessário descobrir nos castelos da memória aquilo que nos pode ajudar a viver e a seguir em frente. Através da memória é importante voltar ao que já caminhámos, ao que já passámos, ao que já sofremos. Aí se encontra um tesouro que pode ser usado. Não se trata de voltar atrás. Usar a memória é atualizar, no presente, a verdade da vida e da história, porque o tempo de seca traz à superfície a grandeza ou a pobreza da nossa situação. Parar para lembrar as pessoas, os acontecimentos, os lugares e os efeitos da relação com Deus é essencial. De certa maneira, vivemos sempre da memória.

2.     Não desperdiçar recursos ou o valor das pequenas coisas

Habitualmente desperdiçamos bastante. Material e espiritualmente. Não é a falta de instrumentos, subsídios, oportunidades que impede a nossa caminhada espiritual. Temos tantos recursos à disposição que por vezes até os banalizamos. Em tempo de seca não pode haver desperdícios. Todas as pequenas gotas de água são importantes, tudo conta, tudo precisa de ser aproveitado. Aprende-se a viver na precariedade e aprecia-se mais o que se tem. Saber viver a pobreza (ou riqueza) do essencial torna-nos capazes de enfrentar longas travessias de escassez. No deserto, sabemos, pode surgir a tentação da murmuração contra Deus, contra a vida, contra os outros, contra nós próprios. Mas murmurar lembrando apenas as ‘cebolas do Egito’, não só não nos deixa mais felizes, como não nos resolve a situação. Deixa-nos antes numa espécie de amargura que paralisa o coração e o transforma num lugar azedo e escuro. É talvez o maior desperdício de recursos. Aprender a agradecer cada pequena coisa, alegrar-se com cada pequena vitória, espantar-se com o pequeno é a marca dos resistentes. Cada gota de água é um dom e uma alegria.

No deserto, sabemos, pode surgir a tentação da murmuração contra Deus, contra a vida, contra os outros, contra nós próprios. Mas murmurar lembrando apenas as ‘cebolas do Egito’, não só não nos deixa mais felizes, como não nos resolve a situação. Deixa-nos antes numa espécie de amargura que paralisa o coração e o transforma num lugar azedo e escuro.

3.     Semear sempre ou o hábito de perseverar

No tempo de seca não só é importante continuar a semear, como é essencial semear ainda mais. Estamos hoje habituados a receber frutos quase imediatos e temos menos capacidade de adiar as recompensas. A seca é um ótimo lugar para aprender a gratuidade da vida e a alegria das recompensas adiadas. Perseverar no que se começou sem desistir e deixar as coisas acalmarem é uma regra importante da sobrevivência e do discernimento. ‘Em tempo de guerra não se limpam armas’, em tempo de crise e desolação não se tomam decisões, pois as dificuldades podem iludir o verdadeiro sentido das coisas e os sentimentos não amadurecidos não são bons conselheiros. Mas pode ser preciso mais. Rezar mais, dar mais, amar mais. Caminhar mais e caminhar sempre é uma regra do deserto. Quem não caminha morre.

Caminhar em conjunto é experiência de salvação. O ‘salve-se quem puder’ e o ‘salva-te a ti mesmo’ são tentações que podem ocorrer, mas são como as miragens no deserto: sozinhos somos sempre menos fortes, menos resistentes e menos felizes.

4.     Partilhar os dons ou a alegria de ter amigos

Ninguém vive por nós, mas não precisamos de viver sozinhos. Em tempo de seca a partilha de recursos é essencial. Encontrar um amigo com quem caminhar, procurar ajuda na dificuldade, não se deixar vencer pelo isolamento e pela solidão são regras a não esquecer. Caminhar em conjunto é experiência de salvação. O ‘salve-se quem puder’ e o ‘salva-te a ti mesmo’ são tentações que podem ocorrer, mas são como as miragens no deserto: sozinhos somos sempre menos fortes, menos resistentes e menos felizes ainda que por vezes tenhamos a falsa sensação de que se fôssemos sozinhos iríamos mais livres e mais depressa. Habitualmente, quem caminha junto chega mais longe.

A seca e a possibilidade dela dizem-nos que as circunstâncias da vida podem ser duras, mas as pessoas em Cabo Verde têm-nos ensinado que não têm que ser as circunstâncias a conduzir a nossa vida. Afinal somos muito mais do que a nossa circunstância.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.