Entre a barbárie, a poesia

Para que servirá a poesia? Este texto, escrito no meio destes tempos e na data em que se celebra a arte poética, não tem ambições de responder: apenas acenar aos lados luminosos da nossa humanidade.

Destes dias cinzentos já o sabemos. Não os podemos evitar mesmo querendo evitá-los. A barbárie e a guerra – falibilidades terríveis da natureza humana – entram-nos pela vida adentro, sem pedir licença nem perdão. A realidade de repente torna-se ainda mais triste e prosaica.

Então, de que servirá um dia mundial da poesia? Indo mais longe, numa pergunta que tem atravessado os tempos: para que servirá a poesia? Este texto, escrito no meio destes tempos e na data em que se celebra a arte poética, não tem ambições de responder: apenas lembrar um olhar que nos ajuda, por vezes em fraco consolo, e que nos devolve o melhor da nossa humanidade.

O poeta português António Barahona, quando perguntado sobre a utilidade da poesia, deu uma resposta lapidar: «A poesia não serve para nada. E é essa a sua verdadeira utilidade». Acredito: a poesia não salva ninguém, a ninguém redime. Não nos torna melhores, quer a poetas quer a leitores. É um prazer estético, solitário e profundamente individual. Um poema  – ou um poeta – é um perfume e como tal não se dá bem com a pele de toda a gente. Apenas os que gostam do seu aroma conseguirão aderir ao poema-perfume.

Desperta emoções, proclama urgências, confessa fraquezas e desejos e saudades. E sobretudo atravessa o tempo, incólume, porque é o melhor da natureza humana depurada. Experimente-se ler António Vieira – não um poeta mas alguém que escreve com intenção prática em forma poética – ou, mais perto do que é o poema, o soneto “Tanto do meu estado me acho incerto”, de Luís Vaz de Camões. Este último oferece uma belíssima descrição do estado de enamoramento – o tal de que se acha incerto – feito de contradições, dúvidas e certezas. Mas é também, na sua origem, um poema dedicado – algo prático, com uma intenção concreta. A poesia pode não ser útil mas é prática. Está-nos próxima porque nasce da vida. E é preciso não ter medo da vida.

Há mais de uma década, um amigo e grande editor – Manuel Hermínio Monteiro – lançou-se a uma tarefa colossal, sabendo-se já doente com o que o viria vitimar. O resultado desse trabalho foi o volume A Rosa do Mundo (Assírio & Alvim) onde aparecem compilados poemas de todo o planeta e desde o princípio dos tempos. Viajamos pela China, pela Babilónia, pelos Sumérios, pelos aborígenes australianos, pelos nativos americanos, pelos salmos bíblicos e tanto mais até chegar à contemporaneidade e ao mundo dito ocidental e moderno. O que une este extraordinário volume não é o facto de ser composto de poemas – é o facto de nos revermos. Ali estão todas as emoções humanas, inalteráveis durante séculos. Podemos gostar mais deste ou daquele poema, sentir maior ou menor estranheza com determinadas formas de dizer. Mas somos sempre nós.

A poesia será, como todas as artes, uma forma de falar com o Outro a partir de nós. Uma forma bela, depurada, mas humana. Existem uns versos de uma poeta americana, Elisabeth Alexander, que o resumem de forma perfeita. Não irei arriscar a tradução mas aqui os deixo:

Poetry (here I hear myself loudest)
is the human voice,
and are we not of interest to each other?

É isto, então: a poesia é a voz humana que procura o Outro. E numa altura em que cavamos trincheiras em vez de pontes, em que o Outro fica esquecido pelo nosso conforto a poesia torna-se mais ainda urgente e prática. Pratiquemo-la, então, como poetas ou como leitores. Sob pena de perdermos o que nos resta de ser humano.

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.