Ensinar religião na escola pública?

Eu posso não ser marxista, mas tenho o dever de saber quem foi Marx e o que escreveu. Não o fazer com o ensino da religião é um erro de graves consequências culturais e humanas.

A religião “em tribunal”
Embora a sociedade reconheça valores que emanam do cristianismo, como a dignidade da pessoa, a solidariedade, o trabalho e a família, a cultura atual, sobretudo no Ocidente, tende a ignorar as suas raízes cristãs, a excluir Deus, a considerar a fé como ato privado e sem qualquer relevância na vida social.

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Quadro da Igreja do Espírito Santo em Évora - Foto de João Ferrand

Assiste-se a uma rejeição cultural do cristianismo. Já não são só os crucifixos depostos das salas de aula e das praças públicas; os símbolos religiosos dos cemitérios retirados ou cobertos; os presépios proibidos nas escolas; os topónimos de matriz cristã (como nomes de santos) substituídos por onomásticos e designações ‘laicas’; as férias escolares “de Inverno/Primavera” para designar “de Natal / e de Páscoa… Em 2015, em Florença, os alunos de uma escola foram proibidos de visitar uma Exposição de arte sacra, por ela ser de tema religioso, e porque ofendia a sensibilidade das famílias não católicas. Em Espanha, a tomada de posse do primeiro-ministro Pedro Sánchez fez-se, pela primeira vez, sem a presença da Bíblia; mas já em 2015, na tomada de posse do Alcaide de Brunete, nos arredores de Madrid, Borja Gutiérrez Iglesias observou que faltava o crucifixo e interrompeu o juramento até ao momento em que uma funcionária devolveu o crucifixo ao seu lugar. E sabem onde estava? Escondido debaixo da mesa. Um vídeo regista o momento.

Em 2015, em Florença, os alunos de uma escola foram proibidos de visitar uma Exposição de arte sacra, por ela ser de tema religioso, e porque ofendia a sensibilidade das famílias não católicas.

Margarida Miranda

Para o combate ao cristianismo alegam-se razões sérias: é opinião entre a elite intelectual e política do Ocidente – e também entre crentes? – que o Cristianismo tem impedido o progresso científico e social e que, portanto, continua a rejeitar os principais dogmas da (pós-)modernidade.

A secularização e o laicismo dominantes colocam permanentemente a religião “em tribunal”, escreveu Marcello Pera[1]. Consideram-na limitadora das liberdades individuais, forma primitiva de conhecimento e, sobretudo, obstáculo à convivência pacífica. Quem professar uma crença religiosa está autorizado a cultivá-la em privado, se quiser, mas nada de a professar na escola, na universidade, no parlamento, na rua ou na comunicação social. Os espaços públicos têm de ser ‘desinfetados’ de símbolos; a coesão nas sociedades tem de ser alcançada sem qualquer referência a vínculos religiosos ou éticos.

Analfabetismo religioso
Um dos progressos mais admiráveis dos nossos dias foi a escolaridade para todos, que desenvolvemos exponencialmente, desde o ensino básico ao secundário e superior. A formação religiosa dos cristãos, porém, não acompanhou a sua escolaridade. O desenvolvimento intelectual e científico dos homens do nosso tempo ainda não inclui a formação religiosa dos crentes. Pelo contrário: os números apontam para um abandono crescente do ensino da Religião nas escolas. Em Coimbra, de onde escrevo, por exemplo, não há uma única turma de Religião no ensino Secundário!

Em Coimbra, de onde escrevo, por exemplo, não há uma única turma de Religião no ensino Secundário!

Margarida Miranda

Grande parte da sociedade e dos cristãos deixou de conhecer o cristianismo (quantas imagens numa igreja, por ex., já não evocam nada… quantas expressões – tabernáculo, Pentecostes, Epifania – só são conhecidas por pessoas de meia idade para diante…).

Não passaria pela cabeça de ninguém ser capaz de compreender o budismo zen sem ensinamento e sem esforço. Com o cristianismo, pelo contrário, domina o sentimento do já conhecido (eu diria do preconceito), que mata a curiosidade em relação à sua riqueza e impede de descobrir o seu tesouro.

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Missal Romano - Foto de João Ferrand

Ensino de religião não é catequese
A reivindicação da religião para o ensino público decorre da nossa conceção antropológica de abertura à dimensão transcendental e, portanto, de uma conceção de educação que se deseja integral: física, intelectual, afetiva e espiritual.

Porém, educar cristãmente não é só fazer uma boa catequese. O ensino da religião é diferente e complementar da catequese; por ser ensino escolar, não supõe a adesão de fé para a transmissão de conhecimentos sobre a identidade do cristianismo e da vida cristã. Nem a sua especificidade lhe diminui a natureza de disciplina escolar: conhecer a antropologia e o legado do cristianismo não deveria ser programa acessório. O ensino da religião requer a mesma exigência e rigor das demais disciplinas escolares – com um suplemento de diálogo interdisciplinar. Quando o manual de História ensina as teorias evolucionistas de Darwin aos nossos filhos, Adão e Eva não podem ficar reduzidos a mera recordação infantil ao nível da Carochinha. Se os filhos ficarem privados dessa cooperação entre fé e ciência, quando irão recuperá-la?

Conhecer a antropologia e o legado do cristianismo não deveria ser programa acessório.

Margarida Miranda

Porque somos seres racionais, devemos entender o que cremos. Precisamos de uma razão que ilumine a fé e de uma fé que ilumine a razão, como tantas vezes lembrou Bento XVI. Quando uma abandona a outra, ambas saem prejudicadas, quer a fé quer a razão: ora na superstição e no fundamentalismo, ora no laicismo autoritário, que é uma falsa criatura da sã laicidade. As alternativas não são duas mas três: entre os erros do fundamentalismo e os erros do laicismo continua aberto o caminho da laicidade, em que nem a fé nega a razão, nem a razão nega a fé.

Para crentes e não crentes
O ensino da religião é a chave para entender um vasto património cultural, cuja expressão artística, literária, musical e filosófica vive de referências religiosas. Por isso, eu diria que o ensino da religião não é necessariamente uma matéria de fé; o ensino da religião diz respeito a crentes e a não crentes. Quer se creia quer não, é preciso estudá-la, saber o que diz e por que o diz. Nas aulas não se avalia a fé – para isso está a catequese, a iniciação aos sacramentos. E o mesmo acontece com as doutrinas filosóficas. Eu posso não ser marxista, mas tenho o dever de saber quem foi Marx e a doutrina marxista. Abdicar da religião no ensino é um erro de graves consequências culturais e humanas.

Por que escasseiam os alunos?
O ensino de religião na escola pública tem como fundamento o princípio da liberdade religiosa e é a sua própria garantia. No nosso sistema educativo, a disciplina de Educação Moral e Religiosa, de oferta obrigatória em todas as escolas e de frequência facultativa, é um dos últimos redutos do direito à liberdade de educação. O seu lugar é protegido pelas grandes declarações de direitos (DUDH, art. 26.°) bem como a Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE) e a própria CRP, que lhe reconhecem importância[2].

Se o ensino da Religião é oferecido em todos os planos curriculares, em todos os anos, a diversas confissões religiosas[3], por que escasseiam os alunos?

Margarida Miranda

Se o ensino da Religião é oferecido em todos os planos curriculares, em todos os anos, a diversas confissões religiosas[3], por que escasseiam os alunos? Porque os pais não os inscrevem. Porque o filho não quer… (e quer Matemática, Português…?). Porque o filho tem explicações à mesma hora, porque está em ano de exame, porque não tem horário, porque embirra com o professor, porque já anda na catequese e no grupo de jovens e precisa de ter tempo livre… Mas a razão remota é sempre a mesma: porque os pais não a consideram assim tão importante. Alguns porque já reduziram a fé à vida privada, à intimidade da família, à autoajuda (à superstição?). Outros porque cederam a uma espécie de neopositivismo, quer dizer, educar para as coisas imanentes. Não cultivamos a transcendência; vivemos pelagianamente, como se a salvação nascesse em nós próprios, contentando-nos com livros de autoajuda, que hoje vendem mais do que os livros de religião.

Mas para os cristãos, a salvação não nasce em nós: é Graça, dom de Cristo, escândalo para os Judeus e loucura para os gentios (1 Cor 1, 23).

Foto de capa – João Ferrand/Companhia de Jesus – Pormenor de quadro da Igreja do Espírito Santo em Évora

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[1] Professor de Filosofia Política e Presidente do Senado Italiano (Porque devemos chamar-nos cristãos. As raízes religiosas das sociedades livres. Braga, Frente e Verso 2013: “Introdução”).
[2] À liberdade de os encarregados de educação escolherem o género de educação a dar aos filhos (DUDH, art. 26.°; cf. CRP, art. 36.°, ponto 5) e de assegurarem a educação religiosa e moral dos seus educandos, em conformidade com as suas próprias convicções (PIDCP, art. 18.°; PIDESC, art. 13.°; Protocolo Adicional à CPDHLF, art. 2.°; CDFUE, art. 14.°) responde a CRP (art. 67.°, alínea c e art. 43.1 e 2) com o dever do Estado de colaborar com os pais na educação dos filhos criando as condições necessárias para que os pais possam optar livremente pelo modelo educativo que mais convenha à educação integral dos seus educandos.
[3] Na página da Educação Moral e Religiosa da DGES constam os seguintes documentos curriculares de referência: Programa de Educação Moral e Religiosa Católica do Ensino Básico e Secundário; Ensino Religioso Segundo os Ensinamentos Bahá’ís; Programa de Educação Moral e Religiosa Evangélica; Programa do Ensino do Budismo.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.