“É urgente o amor”

Casar é sempre um risco. Para que o medo de decidir, diante desta ordem de grandeza, não seja mais forte que a capacidade de avançar é necessário acreditar que o sim que o matrimónio exige, não é improvisado e ingenuamente espontâneo.

Casar ou não casar. Eis a questão!

Sem pôr em causa a profundidade ontológica da citação de Shakespeare, na sua Tragédia de Hamlet – “Ser ou não ser. Eis a questão!” –, creio ser permitida a sua declinação para dimensões, que gravitando na órbita da existência, não deixam de ser, para muitos, essenciais. Casar ou não casar? Eis a questão!

Nestes tempos incertos de pandemia uns decidiram casar na data marcada apesar das circunstâncias, só com a presença de restrito núcleo familiar; outros adiaram as festividades para o próximo ano, nalguns casos sine die, à espera de tempos melhores e mais abertos; outros ainda, deixando passar o estado de emergência e a situação de calamidade, casam agora, neste período ainda incerto, em contexto difícil e com muitas restrições, decidindo não adiar mais o seu sim. Como julgamento sem conhecimento não dá bom casamento, esta é apenas uma constatação dos factos. Cada um terá razões próprias e válidas, para estas ou outras decisões.

Decidir é sempre difícil, exige sempre coragem e é sempre um risco. É um salto para a frente em que se aposta caminho, deixando outros trilhos possíveis, porventura bons, mas que não são os nossos. Viver é assumir a coragem de escolher. Seja nas pequenas (e tão grandes) resoluções de cada dia, seja nas grandes decisões de vida, que comprometem e empenham o que somos em escolhas decisivas e definitivas. Não é possível decidir sem empenhar a vida. Nas decisões, nada é indiferente, nada é ‘limpo’. Como um bom pão que se amassa, decidir ‘suja’ sempre as mãos.

Decidir é sempre difícil, exige sempre coragem e é sempre um risco. É um salto para a frente em que se aposta caminho, deixando outros trilhos possíveis, porventura bons, mas que não são os nossos. Viver é assumir a coragem de escolher.

De certa forma, as grandes decisões de vida, mesmo quando bem discernidas e seguras, são sempre um salto no escuro, um mergulho no desconhecido. Para além dos projetos, dos sonhos, e das expetativas que nos habitam, connosco temos a esperança de que todas as coisas se realizem. As grandes decisões de vida vivem do risco e da esperança, como sementes que se lançam na terra acreditando que transportam dentro de si uma poderosa intensidade de vida e de fruto, ainda latentes, mas cheios de promessa.

Ao limite, se pensarmos bem, controlamos muito pouco da nossa vida e do futuro que ignoramos. São sempre maiores o desconhecido e a incerteza, do que o controlo que julgamos ter da existência e da sua situação. Seremos sempre criaturas, não donos da vida, mas administradores de frágeis sementes que contêm o infinito. Não é uma fatalidade. É um convite à máxima responsabilidade vivida em máxima liberdade.

Neste sentido, também casar é sempre um risco. Em qualquer tempo e em qualquer circunstância! Na necessidade de construir uma história comum, pessoal, fiel e fecunda “o matrimónio é um desafio ao tempo, uma luta contra a morte, porque no amor do outro e na geração do filho se toca o mistério da vida» (F.G. Brambilla). Casar, e sobretudo, casar no Senhor é entrar no mistério do amor com que Deus ama cada pessoa, é entrar no amor fiel e total com que Cristo ama a Igreja, é entrar numa comunhão de amor que é a vida do próprio Deus. Na fragilidade de duas pessoas que se entregam habita a grandeza do infinito: “É tão grande este mistério” (Ef. 5, 31)!

Para que o medo de decidir, diante desta ordem de grandeza, não seja mais forte que a capacidade de avançar é necessário acreditar que o sim que o matrimónio exige não é improvisado e ingenuamente espontâneo. Não deixando de ser misterioso e surpreendente, o sim do casamento (tal como o de outras formas de vida) também se aprende e prepara. Prepara-se quando nos sentimos acolhidos dentro de alguém que, juntamente com um outro, disse sim à nossa vida; prepara-se quando nos descobrimos vivos e doados a nós próprios pelo Criador; prepara-se quando, com os outros, em relação, aprendemos o que é ser amado e amar; prepara-se na força de outros sins que nos inspiram e atraem; prepara-se no vencer o medo dos primeiros passos, no confiar, no cair e levantar; prepara-se no aprender a decidir em cada dia as coisas simples da vida que são o substrato de um viver decidido; prepara-se nas novidades que a juventude arrisca; prepara-se no tempo de namoro vivido como lugar profundo de conhecimento e discernimento vocacional; prepara-se na fé, pois acreditar que Deus nos acompanha sempre nos sins que nos pede, dá-nos um Companheiro de viagem que nunca deixará de ser fiel. Prepara-se de tantos modos, e dá-nos simultaneamente a consciência de que nunca estaremos suficientemente preparados…

Para que o medo de decidir, diante desta ordem de grandeza, não seja mais forte que a capacidade de avançar é necessário acreditar que o sim que o matrimónio exige não é improvisado e ingenuamente espontâneo.

Nos últimos anos, tenho tido o privilégio de acompanhar jovens pares de namorados que se preparam para o casamento com sede de acertar e de assumir o risco de compromissos autênticos. Tenho tido a grande graça de acompanhar casais unidos, fiéis e generosamente fecundos. Tenho tido também o privilégio de entrar na vida dos casais que partilham a vida e as dificuldades em busca de caminhos de superação e entendimento. Tenho tido ainda a graça de acompanhar histórias difíceis, de desentendimento e abandono, de fracassos e desnortes, porque a vida não é um idealismo abstrato, mas realidade nua e concreta, tentativa e erro.

Quero agradecer aos que lutam, aos que permanecem, aos que tentaram, aos que caem e aos que se levantam, aos que se refazem e aos que perdoam.

Quero agradecer, hoje, sobretudo aos que no contexto atual não adiaram o amor, venceram o medo e decidiram casar. Começar uma história de vida em conjunto, no meio de circunstâncias difíceis, é aceitar à partida a realidade como ela é, sem falsos idealismos. Esses são os que nos ensinam que o amor verdadeiro não pode ser adiado, que nos ajudam a distinguir o essencial do acessório, que não confundem necessária prudência e indispensável discernimento com o medo arriscar e de se comprometerem, que acreditam que Deus está sempre, em cada acontecimento e em cada circunstância.

Obrigado por nos lembrarem que “é urgente o amor, é urgente permanecer” (Eugénio de Andrade).

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.