Do fiar e do bordar

E, cá para nós, no nosso ninho ibérico, enquanto há linho na roca e fio no fuso, a esperança e a saudade permeiam-se uma à outra.

Há imagens que transmitem a amplidão interior de um estado de espírito, de um ímpeto, de um processo, de um sentimento. Na nossa cultura, por exemplo, desfiar as contas de um rosário é imagem daquela bem conhecida esperança lusitana velada na saudade.

Há ainda outra imagem que, intuitivamente, nos remete para essa saudade esperançosa e timidamente angustiante: a mulher a fiar ou a bordar. Um gesto lento, repetitivo, uma contemplação atenta do vagar e da destreza das mãos femininas. Noutras épocas, a todo o custo, destinadas à passividade de um mundo pequeno, guardado pelas paredes da casa e pelos limites do quintal, dos valados, das eiras e das leiras, rompido pontualmente pelas idas quinzenais à Vila, nas segundas-feiras de feira, e pela missa de domingo, essa resignação era o que lhes “calhava na rifa”, era o seu fado (aquele que, para os gregos, é ainda maior que os deuses). Talvez não seja acaso a paciência e a temperança serem virtudes femininas. Naqueles tempos, parecia acreditar-se que esta submissão era tudo o que lhes cabia. Por isso, cedo descobriram os mundos que guardavam por dentro, mundos urdidos na imaginação dócil, enquanto as mãos passavam fio a fio o linho embrulhado. Mas na verdade, por dentro deste véu do que parecia conformação, em cada mulher a roca na mão era um cetro, ou então a lança de bronze de Atena. E era rainha e senhora da sua casa. O fuso na outra era como o escudo de Zeus: por mais luta que desse, não havia titã que não tombasse. Venham eles!

Talvez não seja acaso a paciência e a temperança serem virtudes femininas. Naqueles tempos, parecia acreditar-se que esta submissão era tudo o que lhes cabia.

E todo este pulso vibrante não deixava de ser manso e delicado, no fio acrescentado ao pano de linho, desenhado em motivos, traduzido em palavras tantas vezes mal escritas, porque nem a saudade nem o amor escolhem a literacia de alguns para se revelarem, tingido nas cores que ora expõe a alegria interior, ora alentam a saudade e o desejo do amor distante, embarcado no porto para a guerra do ultramar. Só este paninho bordado traz Angola para tão perto!

Imaginar as mãos ágeis, de agulha em riste, atravessando cautelosamente o fio, desenhando na mesma continuidade vagarosa o bico da pomba, a cabeça redonda, uma asa aberta, o dorso curvo. E as palavras, amorosas e maltratadas (porque a vida é dura e a escola não alimenta as bocas!), são as linhas fibrosas do afeto que rasgam o linho branco: “Bai carta feliz buando, no bico dum passarinho. Cando bires o meu amor, dale um abraço e um beijinho.” E há uma espécie de certeza interior, enraizada nas funduras do ventre, de que este pássaro de asas de linho atravessa o Bojador no mesmo instante em que a agulha lhe desenha a última pena.

Lá, no outro hemisfério, entre o cheiro a pó e pólvora, adensado pelo calor tórrido e húmido, alguém pressente um odor distinto e leve e um bater de asas, como um refresco. Na saudade encontram-se, e descobrem que a saudade é uma ausência oferecida. Que mesmo na distância se habitam tão verdadeiramente como nas quatro paredes caiadas de uma casa portuguesa. Mas homem! cerra os dentes e faz-te todo rijo. E por dentro da rijeza e da robustez viris, é aquele ninho lusitano que deseja.

Já Ulisses, roído pelas saudades de Ítaca e de Penélope, nos dizia que nada há mais doce que a pátria, ainda que um homem habite longe, em terra estranha, na opulência de um palácio. E fosse Angola um paraíso, iria sempre faltar o calor do ninho e daquelas mãos humildes, que fiavam e bordavam a promessa de um toque terno, o único que traz aos homens a virtude da pequenez.

Também Penélope, esperando a volta de Ulisses, esperando que as ondas do mar vinhoso trouxessem a sua nau, tecia e destecia: enquanto houvesse que tecer, a esperança era uma candeia acesa. Esta ocupação das mãos é a imagem dos trabalhos infindáveis do coração.  Quem espera fiando não pode deixar que a trama termine. A esperança é um trabalho inacabado.

E, cá para nós, no nosso ninho ibérico, enquanto há linho na roca e fio no fuso, a esperança e a saudade permeiam-se uma à outra. Parar o movimento devoto dos dedos ágeis é cortar as asas ao pequeno pássaro de linho, o único que segue o voo migratório de coração para coração.

E teça-se o que se teça, há de ser a mortalha do soldado caído, ou então o lençol de linho para o ninho do quarto.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.