Como se produz um xenófobo

A xenofobia parece ser um fenómeno crescente. A incapacidade de discutirmos assuntos sociais, no contexto actual, não estará a incrementar este mal-estar? Será a ausência de debate franco a razão do alastramento deste ambiente de suspeita?

Desenvolvi o mau hábito de ler caixas de comentários de artigos de jornal, apesar de saber que me vou enervar e que isso me vai provocar um pessimismo momentâneo a respeito da espécie humana e do nosso futuro colectivo. Ainda assim, não resisto. Mesmo supondo que o universo de leitores-comentadores seja pouco representativo, não deixo de pressentir que aquelas vozes são estuários para muitos dos sentimentos comuns, anónimos. Nesse sentido, é preocupante constatar uma acidez crescente a respeito de certos grupos étnicos e religiosos. Ou seja: as caixas de comentários (e não só) transpiram xenofobia.

Comecemos pelo básico: o que é um comentário xenófobo? Uma primeira característica dos comentários xenófobos é a sua tendência a generalizar e a rotular pessoas e grupos. Perante um crime, o xenófobo interessa-se por saber a que grupo pertence o criminoso. Se for membro de um grupo ‘estranho’ (um ‘preto’, um ‘cigano’, um ‘imigrante’, um ‘muçulmano’), o xenófobo conclui imediatamente que não só o indivíduo, mas todo o seu grupo de origem é criminoso e, portanto, deve ser expulso ou vigiado. Outra característica importante é o seu modo mitológico de interpretar o passado. O xenófobo tende a olhar a história da sua comunidade como sendo uma realidade homogénea e pristina, com uma língua, uma tradição, um conjunto de valores, uma religião, uma população, um património, um destino.

O xenófobo tem dificuldade em compreender que valorizar e honrar o passado, por um lado, e ter espírito crítico, por outro, não são atitudes necessariamente incompatíveis. Por isso, à mínima crítica aos ‘feitos de outrora’, o xenófobo pressente ali uma traição, um desamor, uma vergonha e uma ofensa aos seus Maiores. Tal olhar mitológico do passado e tal incapacidade de juntar memória e espírito crítico ligam-se a uma terceira característica fundamental: o medo de ser invadido e de perder a identidade. O xenófobo olha o outro como uma ameaça, e considera ser seu dever defender o território geográfico e social em nome da sua história, cultura e identidade. Esta suspeita estende-se não só aos estrangeiros, mas a todos os compatriotas que, ao contrário dele, preferem acolher os estranhos a expulsá-los. Portanto, o xenófobo considera-se vítima de um conluio de expropriação.

Agora, a questão que me tem interessado mais, ultimamente, tem sido: como se produz um xenófobo? É claro que haverá vários factores: psicológicos, sociais, económicos, religiosos, etc. Contudo, há uma outra causa possível que é por vezes negligenciada. Pode a xenofobia ser uma profecia auto-realizada?

A ausência de reflexão e de debate social, político, económico e cultural neste contexto de inseguranças não adivinha nada de positivo: é assim que se produzem xenófobos.

Em 1948, o sociólogo americano Robert Merton cunhou a noção de «profecia auto-realizadora» para explicar que a maneira (distorcida) como concebemos uma realidade pode gerar comportamentos que a tornam efectiva e, neste sentido, a ‘profecia’ produz aquilo que afirmara. Por exemplo: ao olhar com desconfiança para um estrangeiro, com medo de que seja criminoso, a comunidade pode estar a criar as condições para que ele se torne num criminoso, de facto. Ou seja: o rótulo pode produzir o fruto. Quase newtonianamente, muitas vezes, a xenofobia instiga aquilo que mais receia.

Como se vê, na origem destas ‘profecias’ está uma má-interpretação persistente dos fenómenos, que se traduz em atitudes de desconfiança. Contudo, não são apenas os estrangeiros que podem ser mal-interpretados: os concidadãos também o podem ser. Também pode acontecer que haja precipitações na hora de rotular pessoas ou ideias como «xenófobas». Com efeito, a coexistência social é complexa e gera diversas tensões que devem ser atendidas. Debaixo de muitas posições xenófobas estão preocupações legítimas, assentes em desafios reais e sem solução linear: como acolher os outros sem abdicar da sua identidade? Como ajudar os que procuram apoio sem faltar à justiça aos cidadãos nacionais? Como promover uma cidadania partilhada? Como garantir a segurança das populações?

Nem todas as interrogações a respeito de imigração, de criminalidade e de convivência entre culturas são necessariamente xenófobas. Mas, se o mal-estar não for tratado de forma esclarecida, que desfaça mal-entendidos, generalizações, e retratos desfigurados a respeito dos outros, e se não houver uma procura de soluções justas e realistas para os problemas de uma sociedade plural, esta ‘profecia’ pode cumprir-se: o desconforto pode resultar em rejeição. Com efeito, na falta de uma cultura política que oiça as pessoas, que reflicta e apresente argumentos fundamentados e que os saiba debater, as comunidades sentem-se cada vez menos representadas e mais-e-mais vulneráveis. A ausência de reflexão e de debate social, político, económico e cultural neste contexto de inseguranças não adivinha nada de positivo: é assim que se produzem xenófobos.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.