Aquele gesto novo

A arte de guardar no coração exige as mãos abertas. E, então, transformas-te no amor, porque não possuis.

Reencontrei aquele homem familiar. Tinha o mesmo rosto lúcido, presente como uma evidência irrecusável, que se conhece sem nomear ou pôr dúvidas. Estava no jardim, em finais de fevereiro, quando as magnólias apressam já todos os rebentos em flor. Era junto a uma camélia pequena que ele se detinha, curvado. As mãos pacientes lançavam um gesto curioso e demasiado novo para os meus olhos habituados à evidência natural dos dias. Por esta altura, em que as camélias estão a florir, o normal seria ver o habitual. Ver, por exemplo, os apaixonados, ou quaisquer outros que tenham uma razão para colher flores, colher as flores vivas da camélia. Mas ele não o fazia. Não que não tivesse razões para colher flores. Todos os homens as têm.

Aproximei-me deste homem, imitando os passos suaves com que ele se tinha aproximado de mim, daquela outra vez, em janeiro. Lancei-lhe a pergunta inocente. “Não apanha flores?”

“Não”, e deslizou a mão pelo ramo, como se nela tivesse a esperança de fazer abrir um botão. “Não, não apanho as flores”. E, neste “não” que soa a renúncia, encontrei uma luz rara que não se vê acesa nos olhos de quem renuncia. Era a luz de alguém a quem nada foi tirado e tudo foi oferecido.

“Mas não gosta das flores? São belas.” Insisti, porque a quem é novo as respostas simples sabem a pouco.

“Gosto. São belas.” E repetiu o mesmo gesto esperançoso de deslizar a mão pelo ramo. “Mas um dia”, continuou, “ prometi olhar as flores sem as colher.”

Manteve por algum tempo os olhos fixos na pequena árvore. Num gesto de consentimento baixei o rosto como quem olha para dentro, porque às vezes ter olhado de frente o rosto da beleza assim o obriga. Na rapidez da minha imaginação, pensei que era da beleza das flores que ele falava. Como se me fosse atirar aos ouvidos a história conhecida daquele homem que, apaixonado pela beleza de uma flor, a quis guardar para si, pétala a pétala, até que nem flor nem beleza sobraram. Ou então, talvez fosse mostrar-me a evidência natural e inevitável que é esta, de que uma flor colhida rapidamente murcha e seca. Assim, em pouco tempo, já eu tinha encontrado duas possíveis justificações.

Aí ele voltou para mim a cabeça e, olhando-me até ao pensamento com um olhar aceso e maternal, limitou-se a dizer que “há homens que colhem flores e há homens que não colhem flores”. Acredito que ele soubesse o que eu pensava e, certamente, achou desadequado tanto raciocínio para algo tão evidente e simples como o porquê de não colher flores.

Pela terceira vez repetiu aquele gesto. Passou a mão, muito ao de leve, por um ramo da árvore. E erguendo-a deixou aparecer um botão cor-de-rosa, muito vivo. Então, ao levantar-se, vi que com a outra mão segurava a camisola, formando um regaço côncavo onde guardava alguns botões de camélia. Eram cor-de-rosa, muito vivo.

“Afinal, sempre colhe flores!”

Complacente, voltou a olhar-me e sorriu com o sorriso meigo de quem se vê forçado a explicar humildemente alguma coisa demasiado nova. “Não, não as colhi. Estas foram-me dadas.”

E, na cadência serena destas palavras, tirou do regaço côncavo um daqueles botões. Guardou-o na mão direita como quem guarda uma promessa pronta a cumprir-se. Deslizou-a pelo ramo da camélia e, num gesto tão novo, uniu o botão à árvore. E mostrou-me a mão vazia.

“Olha”, disse-me, agora já não olhando até ao pensamento, mas até bem mais fundo, “o movimento não é o de colher, mas o de repor e restituir a flor à árvore, para que não morra o que me foi dado. É como deixar que a árvore colha de ti o fruto que te ofereceu. Ou então, como quando a terra permite à chuva que regresse ao céu, depois de a ter regado. Quando algo te é dado não te esqueças que não o possuis. É um dom, e o dom é sempre gratuito. Apoderar-se dele é dar-lhe preço e dono, e nenhum homem sabe quanto vale o que é belo. Muito menos é dono de uma flor. Seria como escreveres o teu nome no rosto do amor até que ele fique desfigurado. Na verdade, quando o amor te é dado, é ele que te marca na fronte com o seu nome. A arte de guardar no coração exige as mãos abertas. E, então, transformas-te no amor, porque não possuis.”

Fotografia de Judson Moore – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.