A riqueza do rosto

Este regresso às aulas está envolto num entusiasmo que há algum tempo não vivíamos. Já não são necessárias as máscaras, e será possível abraçar os amigos com saudade no aguardado reencontro no primeiro dia de aulas.

O bronzeado vai desaparecendo lentamente da nossa pele, e já faz falta um agasalho quando saímos cedo pela manhã, ou quando aproveitamos uma esplanada ao final da tarde. A rentrée não perdoa. É tempo de coordenar horários, fazer listas de material escolar em falta, etiquetar.

Mas este regresso às aulas está envolto num entusiasmo que há algum tempo não vivíamos. Já não são necessárias as máscaras, e será possível abraçar os amigos com saudade no aguardado reencontro no primeiro dia de aulas. A Covid-19 não está erradicada, mas podemos dizer que aprendemos a conviver com este vírus, e que as nossas vidas retomaram traços do que considerávamos ser normalidade.

Parece, pois, um momento propício para fazer um balanço desta experiência. No âmbito de um projeto no qual estou a trabalhar na Universidade, tenho falado com vários educadores a propósito das suas experiências em tempos de pandemia. O testemunho de uma diretora de escola fez-me pensar. Partilhou comigo que, na sua escola, o regresso às aulas com todas as normas de distanciamento e segurança em setembro de 2020 tinha sido mais difícil do que o período de ensino remoto de emergência durante o confinamento obrigatório nesse ano. A comunicação online não era tão rica como a face a face, e tanto professores como alunos sentiram essa limitação, mas partilharem o mesmo espaço físico sem se poderem aproximar, sem poderem ver o sorriso do outro, sem poderem trabalhar em grupo, sem poderem brincar juntos no recreio, sem a proximidade a que estavam habituados, foi ainda mais difícil.

A Covid-19 não está erradicada, mas podemos dizer que aprendemos a conviver com este vírus, e que as nossas vidas retomaram traços do que considerávamos ser normalidade.

Este testemunho fez-me lembrar o pensamento de Sherry Turkle, uma autora que, já há vários anos, tem vindo a defender que a comunicação face a face nos ajuda a desenvolver competências que são essenciais para que nos possamos considerar humanos, entre as quais destaca a empatia. A autora começa por falar de uma dicotomia entre solidão e companhia, que se criou a partir do momento em que as tecnologias digitais nos permitiram existir simultaneamente em dois espaços, o físico e o virtual. Podemos estar numa festa, acompanhados de muitos amigos, mas a nossa atenção estar focada nos emails do trabalho, e portanto estamos profundamente sós. Mas também podemos estar na solidão do nosso quarto a interagir virtualmente com vários amigos numa rede social ou num jogo multi-player online. Esta dicotomia, juntamente com formatos de comunicação síncronos e assíncronos, passou a permitir uma gestão mais eficiente da comunicação. Na comunicação face a face, nem todos temos a poker face necessária para não deixar transparecer as nossas emoções, e por vezes as palavras saem tão rapidamente das nossas bocas que nem tivemos tempo para pensar bem se eram as que queríamos usar. Numa rede social, num programa de instant messaging, num chat ou até num SMS, podemos pensar melhor sobre o que queremos comunicar, salvaguardar a nossa imagem e os nossos sentimentos. É mais fácil sermos quem queremos ser do que quem realmente somos. Face a esta facilidade, Sherry Turkle observa que a comunicação em canais virtuais se está a sobrepor à face a face, e alerta para o facto de isso resultar na perda, ou na falta de treino, de algumas competências essenciais à socialização e à convivência, como a adaptabilidade, o improviso, a empatia, a compreensão das pistas não verbais, a compreensão de duplos sentidos, da ironia, do sarcasmo ou do humor. Mais adiante, a autora defende com mais militância a importância de retomarmos a convivência face a face, argumentando que, se perdermos a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro, de tentarmos ver o mundo a partir da perspetiva do outro, de chegarmos a consensos, de nos compreendermos, deixaremos de ser verdadeiramente humanos.

É interessante reposicionar o pensamento de Sherry Turkle à luz da pandemia Covid-19, pois todos compreendemos o enorme valor da comunicação virtual, sem a qual não teria sido possível dar continuidade ao ensino, ao trabalho, às compras, às relações, e os confinamentos teriam sido muito mais difíceis. Por outro lado, também todos fomos chamados a reavaliar a importância de possibilidades que tínhamos como garantidas, tal como um aperto de mão ou um abraço, ou um simples sorriso.

Os períodos de confinamento, juntamente com as regras de distanciamento social, foram particularmente duros para os mais novos, que ainda estão a desenvolver as suas competências de comunicação e de socialização. Dois anos e meio depois do início da Covid-19, temos crianças e jovens que não gostam de ser tocados, que têm receio de estar em espaços com muita gente, que têm dificuldade em fazer novas amizades, que continuam a refugiar-se no mundo virtual pois é nesse espaço que se sentem mais confortáveis. Mas, se algumas competências se perderam, outras se ganharam.

Dois anos e meio depois do início da Covid-19, temos crianças e jovens que não gostam de ser tocados, que têm receio de estar em espaços com muita gente, que têm dificuldade em fazer novas amizades, que continuam a refugiar-se no mundo virtual pois é nesse espaço que se sentem mais confortáveis.

Hoje, somos peritos em descodificar o que os olhos dos outros nos dizem, desenvolvemos novos cumprimentos, criámos novos códigos e sinais. Perante a falta dos sorrisos, aprendemos a descodificar toda a riqueza do rosto e do corpo, e a reconhecer todos esses elementos como integrantes da comunicação.

Este regresso às aulas será, assim, duplamente rico, porque as nossas crianças e jovens irão recuperar o toque e os sorrisos, e também porque têm uma sensibilidade redobrada para os olhares, as distâncias, os gestos. Seria bom que colocassem todas essas competências comunicacionais que desenvolveram ao serviço da construção de relações positivas com os outros. Que se apercebessem mais facilmente se um colega está triste, e que conseguissem perguntar-lhe se podem ajudar de alguma forma. Que pudessem quebrar os ciclos de bullying, deixando de ser agressores ou vítimas. Que se lembrassem que um sorriso genuíno vale mais do que uma foto instagramável, e que um abraço amigo é bem mais caloroso do que um like.

Que se lembrassem que um sorriso genuíno vale mais do que uma foto instagramável, e que um abraço amigo é bem mais caloroso do que um like.

Claro que a virtualização da comunicação e a perda da empatia não é uma tendência que afete apenas crianças e jovens. Também os adultos foram afetados pela pandemia Covid-19. Muitos deles vêem-se agora enredados em práticas de trabalho híbridas que por vezes são ainda mais fatigantes, outros passam mais tempo online do que deveriam. Urge, portanto, que a rentrée seja um recomeçar para todos, e não apenas para os que regressam às aulas, pois o exemplo é estruturante e determinante para o desenvolvimento das crianças e jovens. Vamos todos desfrutar da riqueza que é podermos ver os rostos integrais uns dos outros, estar mais atentos, comunicar mais, tomar o lugar do outro, e contribuir, nos pequenos gestos do dia a dia, para o bem de todos.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.