À mesa da memória partilhada

Ajustar contas com o passado não é sinónimo de vingança, nem de cobranças extemporâneas. É saber resolver a equação entre o que fizemos e o que somos, por onde andámos e por onde queremos seguir. É caminho para a paz.

São apenas ossos, esqueletos descarnados metidos na poeira dura da terra pisada por anos de esquecimento. Ou de silêncio. Os ossos ainda estão na terra, emergem ao ritmo permitido pelas mãos cuidadosas dos que escavam com colherim, bisturi e escova. Os esqueletos estão sobrepostos, justapostos, entrepostos.

No meio da terra, dos ossos e do entulho de décadas, algum objeto metálico, umas chaves, uma fivela, uma roca de brincar. A roca de plástico colorido que Catalina Muñoz levava no bolso quando a fuzilaram e que o filho mais novo, Martín de la Torre, na altura com 9 meses, pôde conhecer 83 anos depois (história invocada aqui).

A terra e o tempo consomem as carnes e as fibras a grande velocidade, mas há dois materiais quase imperecíveis: o metal e o plástico. Por isso, impressionam as imagens desses ossos despidos com uma aliança no dedo, um pente à altura do peito, calçado nos pés. Impressionam menos pelo que aparentam do que pelo que representam: a família separada, o quotidiano truncado, o caminho interrompido.

É nisto que penso quando, nos jornais, nos livros, na TV ou no cinema, acompanho a abertura de valas comuns de mortos da guerra civil de Espanha.

Dia 18 de julho passará mais um ano desde o levantamento militar contra o governo da república que deu origem à guerra civil espanhola (1936-1939). Assinalam-se por isso 84 anos do início do confronto. Oitenta e quatro anos não é “uma conta certa”, mas a memória de um país não pode ser assinalada em diuturnidades pré-estabelecidas. Menos ainda a memória da guerra e do trauma, as memórias do conflito, que se regem por diferentes ritmos públicos e privados, emergindo às vezes de forma inesperada.

Sobretudo nas terras de fronteira, as populações conhecem ainda as histórias do tempo do silêncio e do medo, da perseguição e da culpa, da delação e da cumplicidade.

Parece que estou a escrever sobre uma história alheia, mas os destinos de Portugal e Espanha são destinos gémeos de séculos e a memória da guerra civil e do franquismo não é estranha à memória do salazarismo. Sobretudo nas terras de fronteira, as populações conhecem ainda as histórias do tempo do silêncio e do medo, da perseguição e da culpa, da delação e da cumplicidade. A literatura, o cinema e a ficção televisiva são disso testemunha. Recordo, a título de exemplo, o romance de Ana Margarida de Carvalho, O gesto que fazemos para proteger a cabeça (Relógio D’Água, 2019), o filme de Luís Filipe Rocha, Sinais de fogo (1995), que adapta o romance homónimo de Jorge de Sena (1978), ou ainda a série realizada por Jorge Paixão da Costa para a RTP, A Raia dos medos (1999). Aquela guerra que começou há 84 anos é também a nossa, porque é vizinha, e porque em todas as guerras se perde algo da humanidade que somos.

As guerras acabam, mas nunca se resolvem, pensa o narrador do primeiro relato da obra de Alberto Méndez, Los girasoles ciegos (2004; Sextante Editora, 2009). É um narrador derrotado como as restantes personagens do livro. Na verdade, acredito que talvez seja possível resolver uma guerra; certamente com a passagem do tempo sobre as gerações é possível colocar o conflito no domínio da História ou do mito, e perder a sua memória experiencial.

No entanto, há “memórias subterrâneas”, latentes, numa esfera familiar e privada, que surgem no espaço público e que têm de ser colocadas em confronto na sociedade. Aconteceu com a memória da guerra civil e do franquismo e a lei de reparação conhecida como Ley de memoria histórica (2007), que não esgotou o assunto, mas que marca um antes e um depois da relação institucional da Espanha com o seu passado traumático.

Que sejamos capazes de nos comover com o sofrimento dos outros e que o diálogo, a aproximação ao outro, parta da noção de compaixão, sem culpar as vítimas nem vitimizar os culpados.

Como fazemos, como faremos em Portugal com a memória da guerra colonial? Não ao nível da literatura e das memórias vivenciais, mas no espaço público, num discurso institucional crítico e aprofundado? Que dizemos aos “filhos que os militares portugueses deixaram na guerra”, sobre os quais investigou e escreveu Catarina Gomes no livro Furriel não é nome de pai (Tinta-da-China, 2018)? Como e quando assumimos o passado, num trabalho de memória sem fúria, moroso e delicado, alargado e intergeracional?

Falar sobre a guerra e sobre a memória da guerra é em qualquer comunidade um imperativo ético, e assumir o passado de cada país, de cada grupo é fundamental para a vida de uma democracia plena. Ajustar contas com o passado não é sinónimo de vingança, nem de cobranças extemporâneas. É saber resolver a equação entre o que fizemos e o que somos, por onde andámos e por onde queremos seguir. É caminho para a paz. Mas não um simulacro de paz, construído em cima de alicerces de silêncio e de tédio (a propósito do Brexit, em 2016, o escritor britânico Ian McEwan escreveu no Daily Mail, que a paz é um aborrecimento, exceto para aqueles que se lembram do que é a guerra).

Gosto muito da dimensão moral com que o filósofo espanhol Jordi Ibáñez Fanés reflete sobre a memória do conflito na sociedade espanhola. No seu livro Antígona y el duelo (2009) propõe que a memória seja partilhada, não como quem partilha o pão, mas como quem partilha a mesa. Que sejamos capazes de nos comover com o sofrimento dos outros e que o diálogo, a aproximação ao outro, parta da noção de compaixão, sem culpar as vítimas nem vitimizar os culpados.

A pensar nas memórias da guerra e do trauma, e a pensar na construção do nosso presente, termino com uma citação de Ibáñez Fanés. Perdoe-se-me que é longa e a mantenho em espanhol: “[…] cada uno aporta su trozo de vida, y la suma final, una suma en que nunca lo individual queda subsumido en lo colectivo, da esa idea de memoria compartida. Sólo que luego ni esta idea es nada imaginable ni esta memoria compartida puede traducirse en una narración, sino más bien en una moralidad doliente, en una Trauerarbeit, en el proceso de duelo compartido. Con esta idea […] se podría explorar la posibilidad de que todas las memorias condicionadas por experiencias opuestas del daño y del sentido de la injusticia se reencontrasen en ese lugar intangible pero piadoso y doliente, en esta imaginaria mesa de la memoria compartida”.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.