A Brotéria é herdeira de uma história centenária e de um legado extraordinário que não deixam de ter algo de comovente. Com dedicação incansável de tantos jesuítas, uns que se notabilizaram, outros que permaneceram mais anónimos, e de um sem-número de colaboradores, em 120 anos de publicação mensal praticamente ininterrupta, esta revista foi testemunha e refletiu a queda da Monarquia e a implantação da República em Portugal, mudança com a qual viveu, ela própria, o exílio; a Iª e a IIª Grandes Guerras; o Maio de 68 e o Concílio Vaticano II; a ascensão da ditadura e o seu fim com o 25 de Abril; a guerra colonial e a descolonização; todo o progresso científico, o advento e a afirmação da era digital.
Reconhecida por tão valioso património, a revista Brotéria assume-se, hoje, como sujeito ativo do projeto cultural maior ao qual dá nome e do qual passou a fazer parte, iniciado pelos jesuítas portugueses, em 2020, em Lisboa. Intencionalmente situado no meio da cidade, no Bairro Alto, abre-se a quem a habita ou simplesmente com ela se cruza, com o desejo de cultivar a atenção às suas múltiplas dinâmicas, imaginários e linguagens e de se implicar em pensar, experimentar e cooperar com tantos sujeitos, individuais e coletivos, que dão forma à vida urbana, que interpretam as suas forças e expressões, que atuam nela para que seja mais humana. Assume que o humano é espiritual. Revê-se no caráter poliédrico e polifónico da fé cristã. Declina cultura no plural. Assume a exigência do encontro e do diálogo, o risco da exposição e o seu grau de imprevisibilidade, a paciência dos processos partilhados, lentos e longos. Assume que a forma é conteúdo e que, por isso, a identidade cristã não se diz menos pelo modo de proceder do que pelo enunciado, sem renunciar, com isto, à elaboração de um pensamento teológico. Com a prática honesta da hospitalidade, solicita também hospitalidade para a fé e as práticas cristãs, num contexto em que a voz da Igreja se tornou uma entre tantas outras, não seguramente a primeira nem a última, como foi noutros tempos. Ainda que marginal, é, porém, uma voz. Se for qualificada pelo Evangelho, ressoando nas praças, nas casas ou apenas no deserto, será qualificadora da humanidade comum que partilhamos.
Assume a exigência do encontro e do diálogo, o risco da exposição e o seu grau de imprevisibilidade, a paciência dos processos partilhados, lentos e longos. Assume que a forma é conteúdo e que, por isso, a identidade cristã não se diz menos pelo modo de proceder do que pelo enunciado, sem renunciar, com isto, à elaboração de um pensamento teológico.
Promover o diálogo entre a fé cristã e as culturas urbanas contemporâneas é a missão que esta casa abraça e que a revista faz sua enquanto continua a observar, a pensar, a escrever e a gerar diálogos sobre realizações, assuntos e problemas de sociedade e política, de artes e letras, de teologia e filosofia, de ética e estética, de ciências e religiões, porque “nada do que é humano lhe é estranho”. Desde logo, pela urgência epocal de cultivar a verdade da nossa humanidade comum, sempre exposta ao risco da desumanidade, de promover relações justas entre pessoas, comunidades, instituições e povos e modos também justos de vida. Depois, pelo dever ético de deixar em herança uma casa habitável às gerações vindouras. Tanto a crise antropológica como a ambiental pedem hoje um compromisso premente e partilhado. Em fidelidade ao desejo de há mais de um século, a revista crê assumir, deste modo e no que está ao seu alcance, urgências que são da Igreja e do mundo no seu conjunto, neste nosso tempo que, como tem repetido o Papa Francisco, não é só tempo de mudança, mas se apresenta e se vai configurando como mudança radical de tempo.
Neste quadro, entendemos que não é possível nem um pensamento cristão nem uma prática cristã que se assumam, por princípio, contra a cultura ambiente ou, menos ainda, sem cultura. Nesse caso, a verdade evangélica viria simplesmente de fora ou de cima, à revelia dos processos biográficos e das dinâmicas culturais. Importa ter presente que ser contra cultural passa sempre por assumir determinada cultura, que é, também ela, circunstancial e em processo. A denúncia ou o combate a determinada cultura faz-se, incontornavelmente, a partir de um quadro cultural particular. Pensar-se sem cultura ou supra-cultural seria simplesmente uma abstração. Seria como não ter corpo nem interlocutores e não ter sequer palavra, porque também esta é dado e dinâmica cultural. Assumimos, por isso, a coligação e a relação dialógica, ainda que tensional e, por vezes, de conflito, entre verdade evangélica e culturas. Se quiséssemos manter o propósito e a expressão “evangelizar a cultura”, de que não gostamos, por nos pôr num lugar, supostamente, externo a ela, deveríamos ser capazes de a conjugar com igual disposição para nos deixarmos “evangelizar pela cultura”, mesmo que, à partida, nos fosse indiferente ou mesmo hostil. Porque a relação da fé cristã com o seu “fora” ou o seu “outro” não é unidirecional. A fé cristã que marca as culturas é marcada pelas culturas que, desde logo, põem em causa a permanente tentação da autorreferencialidade e da idolatria a que está exposta. Foi sempre assim em toda a história do cristianismo, desde o início. O próprio Jesus de Nazaré, que os cristãos creem o Verbo de Deus encarnado, foi judeu que compreendeu a realidade, se compreendeu e se exprimiu como judeu. O seu alcance universal parte de uma história de vida particular e de um lugar cultural determinado. O mesmo se aplica aos primeiros discípulos. Veio depois a vigorosa modelação do cristianismo a partir de categorias do mundo grego e assim, sucessivamente, ao longo da história. A fé cristã assinala os tempos e os espaços, enquanto é assinalada por eles. A verdade evangélica configura-se sempre em formas culturais, não se esgotando em nenhuma delas. Aguarda a diversidade dos tempos e lugares para poder dizer-se mais e melhor em altura, largura e profundidade. Sem esses, não diria o que tem a dizer e que ainda não pôde dizer por falta de interlocutores que lhe deem a possibilidade de dizer mais. Cabe, por isso, à Igreja a atenção e o interesse, o discernimento crítico e a paciência da decantação de todas as expressões da cultura, para elevar o bem que aí se revela, e, se for o caso, para denunciar e se implicar na transformação de possíveis desordens e iniquidades. Ao mesmo tempo, para perscrutar nelas os sinais através dos quais o Espírito lhe fala e a impelem ao necessário exercício de tradução da tradição, qual ato criativo de fidelidade à missão.
Cabe, por isso, à Igreja a atenção e o interesse, o discernimento crítico e a paciência da decantação de todas as expressões da cultura, para elevar o bem que aí se revela, e, se for o caso, para denunciar e se implicar na transformação de possíveis desordens e iniquidades.
Logo no início do pontificado, em conversa com Antonio Spadaro SJ, diretor da revista La Civiltà Cattolica, o Papa Francisco enfatizou que a fé cristã não é uma «fé-laboratório». Dado que «Deus se revelou como história» e «não como um compêndio de verdades abstratas», a fé cristã é uma «fé-caminho», uma «fé histórica». Por isso, a verdade evangélica não é alcançável pela fé de modo puro, independentemente dos tempos e das culturas, do mesmo modo que a fé não se pensa, não se diz e não atua fora de um tempo específico e de um cenário cultural particular. Em relação à fé cristã, a cultura não é uma simples realidade externa. Pelo contrário, é-lhe constitutiva. Não existe fé cristã que não seja culturalmente mediada; não existe acesso à verdade evangélica fora das condições históricas e culturais daqueles que lhe acedem, que são sempre sujeitos individuais e coletivos biográfica e culturalmente situados.
De forma lapidar e não sem coragem, porque mexe numa importante síntese medieval que chegou até nós, no n.115 da Exortação Evangelii Gaudium, o Papa Francisco afirma: «A graça supõe a cultura e o dom de Deus encarna-se na cultura de quem o recebe». S. Tomás havia escrito que «a graça supõe a natureza como a perfeição supõe o que é perfectível». “A graça supõe a cultura”, ou seja, supõe, segundo o Papa, o «estilo de vida que uma determinada sociedade possui», a «forma particular que têm os seus membros de se relacionar entre si, com as outras criaturas e com Deus». A cultura suposta pela graça abrange «a totalidade da vida de um povo» que, «na sua evolução histórica, desenvolve a sua própria cultura com legítima autonomia». Ora, uma vez que «o ser humano está sempre culturalmente situado», não conheceremos nem cultivaremos a humanidade comum sem conhecermos e sem cultivarmos a cultura na qual cada homem, mulher e comunidade vivem, se compreendem e se exprimem.
O Concílio Vaticano II, no n.53 da Constituição Gaudium et Spes, já havia afirmado que, «sempre que se trata da vida humana, natureza e cultura encontram-se intimamente ligadas». Daqui o dever de manter interligados e co-implicados, pelo menos três elementos: a natureza, a cultura e a liberdade individual. Desligados, cair-se-á em variações de um mesmo excesso reducionista: ou no apagamento do dado natural (“só cultura” ou “tudo é construção cultural”), ou na desconsideração do quadro cultural (“só natureza” ou “tudo é naturalmente determinado”), ou na exasperação do foco individual (“só autonomia individual” ou “tudo é escolha individual”). Do mesmo modo, no âmbito específico da fé, importa ter especial vigilância para não confundir nem impor determinado dado cultural como dado natural ou vontade-direito divino. Mitificando o passado ou um certo passado e perdendo o sentido dos processos históricos, esse risco será ainda maior – se a verdade evangélica encarna sempre em formas culturais, não se identifica plenamente, nem se esgota em nenhuma delas.
“A graça supõe a cultura”, ou seja, supõe, segundo o Papa, o «estilo de vida que uma determinada sociedade possui», a «forma particular que têm os seus membros de se relacionar entre si, com as outras criaturas e com Deus».
Ora, os campos e questões de aplicação da tríplice relação natureza-cultura-liberdade são inúmeros. Vão da identidade sexual e das questões de género à biotecnologia. A honestidade e franqueza do diálogo com as culturas contemporâneas não será estranha à relação viva e à tensão justa que consigamos manter entre os três elementos. Daqui, enquanto revista cristã de cultura, nasce também a motivação para promovermos, tanto a atenção e a reflexão atenta, serena e comprometida sobre os múltiplos fenómenos e expressões culturais do nosso tempo, como o pensamento teológico que olha e pensa a história ordinária de homens e mulheres de hoje como lugar teológico, assim como a partilha de conhecimento multidisciplinar amplo e rigoroso.
Por último, com a modernidade, o cristianismo deixou de ser o principal, quase único, produtor cultural que foi em tempos. Deixou de contar com o poder que gere o todo e com um sentido unívoco transversal a todos. Neste novo cenário, a tentação poderá ser a da retirada do espaço público e da produção cultural e a do isolamento. Cremos, porém, que haverá outro caminho mais promissor para que a fé cristã continue a gerar cultura partilhada, visível e reconhecível: narrações à altura de Deus e do humano, formas de vida “vivíveis”, individuais e coletivas, práticas de fraternidade e de salvaguarda da criação, modos de pensamento crítico e discernido. Será um cristianismo eventualmente mais pobre, mais descentrado e periférico, mas, precisamente por isso, mais evangélico. Passará pela hospitalidade, não só declarada, mas de facto, que implica sempre desprendimento de si – mas este é o dado de maior alcance pascal, já que a vida que permanece é aquela que passa pela perda da própria vida em favor de outrem; passará pela permeabilidade, pela aprendizagem com outros, pelo pensamento relacional e processual, tendo como referente a escuta, tanto da Palavra de Deus, como do que eleva e do que expõe a vulnerabilidade da nossa humanidade comum; passará pelo conhecimento recíproco, pelo cruzamento de diferentes sensibilidades e expressões, pela colaboração qualificada e honesta com tantos outros atores culturais, sem perder, com isso, “um não sei quê” de distanciamento, de desfasamento, de desadequação que sempre marca o modo de ser cristão – sendo do mundo, não é do mundo.
Na verdade, é este o caminho que a Brotéria tem vindo a abraçar quando, além de revista, passou a ser espaço cultural, com galeria aberta à arte contemporânea, programação própria e alojada, atenta às realizações e interrogações que a realidade quotidiana vai fazendo nascer, biblioteca cultivada ao longo da existência da revista que se põe ao dispor dos leitores de hoje.
Ainda que fosse por meio de comunidades pequenas ou marginais de crentes, o Evangelho e a tradição viva da Igreja continuam a ser fonte e dinamismo de sabedoria, de imaginação e de ação. Desse lugar fecundo, continuarão a gerar-se forças espirituais e a ganhar forma cultural e biográfica modos de vida, de pensamento e de expressão que sejam capazes de interpretar o desejo humano, de narrar as promessas mais fecundas e de agir sobre os nós mais intricados da mesma aventura humana que partilhamos e que cremos ser habitada pelo Espírito de Deus.
O presente texto repropõe, em versão reduzida e adaptada, o Editorial do nº. de Janeiro de 2022, da revista Brotéria (vol. 194-1)
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.