«Vai ou fica?…» Será mesmo essa a questão?

A nomeação do Procurador-Geral da República deve estar submetida ao normal escrutínio democrático. No entanto, os contornos concretos da atual azáfama em torno do nome de Joana Marques Vidal levantam perplexidades e convidam-nos à reflexão.

Na última quinta-feira chegou ao fim a telenovela «recondução sim… recondução, não… recondução, talvez…» que rodeou a possibilidade de Joana Marques Vidal ser nomeada para um segundo mandato como Procuradora-Geral da República (PGR). Com a nomeação de Lucília Gago o debate público que animou a rentrée política (e que tinha começado há vários meses) encontrou o seu desfecho, com o Governo – que tem competência para indicar o nome do PGR – a acabar por “levar a melhor” sobre a pressão exercida para a manutenção no cargo de Joana Marques Vidal por mais seis anos. Este debate público tem certamente uma justificação genérica já que se trata de um cargo da maior importância que, sendo de nomeação política (ao contrário dos juízes), deve estar submetido ao normal escrutínio democrático. No entanto, os contornos concretos da atual “azáfama” em torno do nome de Joana Marques Vidal levantam umas quantas perplexidades e convidam-nos à reflexão.

O que diz a lei? E a história? Antes de mais, convém recordar que a Constituição prevê o mandato de seis anos do cargo de PGR, no seu artigo 220, 3º, e nada diz sobre a possibilidade da sua renovação. Portanto, “pode-se fazer” (nem sequer é proibido), mas também não se “tem de fazer”. Nem os defensores do “mandato longo e único” nem os seus opositores podem socorrer-se do texto da Constituição pois este (precisamente por falta de consenso) deixou a questão em aberto. Por outro lado, olhando para o passado, entre os anteriores titulares do cargo, depois do 25 de abril, José Cunha Rodrigues foi PGR durante 16 anos, de 1984 a 2000, enquanto os dois últimos, José Souto Moura e Fernando Pinto Monteiro, cumpriram apenas o mandato de seis anos.

Primeira perplexidade: porquê tanto dramatismo? Se este é o quadro legal e a nossa prática institucional, parece-me um pouco exagerado o tom acérrimo ou até apocalíptico que envolveu a decisão de nomear uma nova PGR. Se Joana Marques Vidal tivesse sido afastada durante o seu mandato (coisa que seria sempre possível fazer, se houvesse acordo entre o Presidente da República e o Governo) então seria caso para bradar aos céus. Certamente, a atual existência de processos judiciais que mexem com pessoas e setores da nossa sociedade tidos como “poderosos” ou mesmo “intocáveis” torna o momento sensível, mas não parece ser um grande serviço (nem um elogio!) ao sistema judicial a “personalização” do andamento destes casos na figura concreta que exerce o cargo de PGR.

Primeira perplexidade: porquê tanto dramatismo? Se este é o quadro legal e a nossa prática institucional, parece-me um pouco exagerado o tom acérrimo ou até apocalíptico que envolveu a decisão de nomear uma nova PGR.

Segunda perplexidade: mas afinal, o que está em jogo? Não é fácil, no meio do burburinho levantado por esta questão, ouvir argumentos sólidos a favor de uma ou outra posição. A discussão das últimas semanas de pouco ou nada serviu para a reflexão (ou o simples conhecimento) acerca do funcionamento do Ministério Público e da administração da Justiça em geral. Do mesmo modo, ao reduzir a questão a um braço de ferro entre instituições (Governo, Presidente, partidos…), o debate passou essencialmente ao lado de uma análise sensata do mandato de Joana Marques Vidal e do perfil de PGR que o sistema judicial neste momento necessita.

Terceira perplexidade: onde anda o essencial? Como consequência do desvio da atenção para elementos marginais da questão, criou-se, a meu ver, uma cortina de fumo que acaba por distrair a atenção do público (e o escrutínio democrático) das questões que verdadeiramente interessam no âmbito da administração da Justiça. Quando a crise económico-financeira que o país atravessou (ainda atravessa?) rebentou em 2011, o memorando de entendimento assinado com a troika sublinhava – a par das famigeradas medidas de “austeridade” – a necessidade de uma reforma do sistema judicial e o papel essencial de uma justiça célere, eficaz e independente para a retoma do país. solução da crise. Os cidadãos e as empresas podem contar com as instituições para defender os seus direitos? Os tribunais têm capacidade para decidir atempadamente as questões que lhes são submetidas? A criminalidade é adequadamente investigada e punida? Estas são as perguntas que tocam o coração da nossa convivência social.

O que podemos concluir? O debate em torno da nomeação da nova PGR convida a uma salutar discussão – exigente, sem preconceitos nem falsos dramatismos – em torno da independência do sistema judicial e, em particular, do Ministério Público.

O que podemos concluir? O debate em torno da nomeação da nova PGR convida a uma salutar discussão – exigente, sem preconceitos nem falsos dramatismos – em torno da independência do sistema judicial e, em particular, do Ministério Público. Qualquer sinal ou suspeita de interferência deve ser escrutinado e devemos esperar que “os jornalistas façam o seu trabalho”, para parafrasear o Papa Francisco. Mas, sobretudo, esta é uma oportunidade para não nos deixarmos distrair pela politiquice e exigirmos aos nossos governantes um verdadeiro compromisso com a reforma da Justiça!

Agradeçamos, portanto, a Joana Marques Vidal pela seriedade universalmente reconhecida com que desempenhou o seu mandato e desejemos a Lucília Gago as maiores felicidades para os desafios que enfrenta e dizem respeito a todos nós!

Foto de capa: João Pedro Filipe

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.