Retribuir cuidado e empatia

A sociedade grita e ninguém ouve: é urgente implementar uma nova forma de viver. Mas se a sociedade exige uma nova forma de viver, é tempo de mostrar que todos nós somos capazes de adotar uma responsabilidade social e compartida de cuidar.

Certamente já terão ouvido a fábula da cigarra e a formiga. A história fala da importância e do valor do trabalho, do valor do esforço e da recompensa, do valor da liberdade e da responsabilidade. Vi no outro dia com o meu filho, uma nova versão da fábula que em vez de terminar com a formiga a fechar a porta na cara da cigarra, a apresenta com uma atitude empática! É, nesta versão da história, a formiga deixa entrar a cigarra na toca acolhedora, para que passe o inverno com as formigas, compartindo os mantimentos que haviam conseguido para o inverno. E porquê? Porque sem a sua alegria, música e canto, as formigas não poderiam ter arrecadado tantos alimentos. Trabalharam mais que nunca, e o cansaço transformou-se em satisfação e animo, com ritmo e risos graças à presença da cigarra! Esta foi pois a forma empática que a formiga encontrou para retribuir o cuidado da cigarra. Um cuidado invisível. Desta forma, a fábula ensina agora também a ser empático e retribuir algo muito valioso: a presença e o cuidar.

Desta forma, a fábula ensina agora também a ser empático e retribuir algo muito valioso: a presença e o cuidar.

 

Atualmente vivemos mais, mas não necessariamente melhor! Com ou sem doença, todos envelhecemos, mas temos dificuldade em lidar com isso. O problema é que esse tempo “até que a morte chegue”, pode ser longo. E, se esse tempo ativo de envelhecer for acontecendo sem intentos fúteis que nos “obrigam” a viver a todo custo, é natural, faz parte da vida. Mas estará a sociedade preparada para lidar com isto?

Para envelhecer bem, é interessante pensar em várias questões que podem dar resposta ao como queremos ser cuidados. Seria como fazer um testamento vital pondo em foco todas as minhas necessidades previsíveis futuras: as necessidades básicas de segurança, relacionais, de estima e de autorrealização. Pensem nisto por um minuto…

– Quem me irá cuidar? Por quem quero ser cuidado? Onde quero ser cuidado? Como quero ser cuidado?

Na situação de dependência e vulnerabilidade, o cuidado é imprescindível e indispensável. A grande questão é que faltam muitas vezes respostas adequadas para cuidar das várias necessidades identificadas! Faltam políticas sociais, de ação, de visão para o futuro. No nosso tempo e por múltiplas razões, a prática do cuidar tende a sair do núcleo familiar e da casa da família e passar para os hospitais, centros de saúde, lares ou instituições sociais, sem ter em conta que estes locais têm recursos limitados e as pessoas que carecem de cuidados ativos, pela sua dependência e vulnerabilidade, duplicarão em 30 anos e têm necessidades absolutas!

É urgente criar uma comunidade de diálogo e relação, centrada na prática do cuidar de uma forma livre e voluntaria. Na verdade, o homem nasceu para isso, para cuidar e ser cuidado. Quando nascemos, mantemos a nossa dependência durante muito tempo, mais que qualquer outro ser vivo. O mesmo acontece quando adoecemos: quem não gosta que lhe cheguem um chá quentinho quando lhe dói a garganta? Se conseguirmos assumir que todos somos vulneráveis em distintas etapas da vida e que a relação com o outro é para nós fonte de vida, compreenderemos que cuidar o outro não é uma opção, é um dever.

. Seria como fazer um testamento vital pondo em foco todas as minhas necessidades previsíveis futuras: as necessidades básicas de segurança, relacionais, de estima e de autorrealização.

Diariamente recebemos cuidados de uma forma tão vulgar que muitas vezes não os apreciamos. Por exemplo, já pensaram nos restaurantes, os cabeleireiros, os serviços de higienização e recolha de lixo como serviços de cuidado? Porque o são! Se queremos viver numa sociedade cuidadora, impõe-se transformar a atitude e o tempo de cuidar numa necessidade humana. Urge entender o cuidado como um valor publico que deve ser preservado e fomentado.

Certamente todos ainda se lembrarão de como cuidámos e fomos cuidados no momento em que a pandemia COVID-19 atingiu o mundo. Muitos falaram que nunca se tinha visto um mundo tão humanizado, como se antes não fossemos humanos! Na verdade, neste período crítico que assolou a humanidade, destacou-se o movimento compassivo que surgiu em muitos locais de uma forma espontânea. Vimos em ação o que é uma comunidade cuidadora. Vimos que as pessoas se deixaram influenciar pelos valores essenciais da vida.

As estruturas sociais que existem e que apoiam momentos de vulnerabilidade são muitas vezes consideradas fechadas e não funcionam da maneira esperada. Não estão conectadas em rede e, ainda que estejam conectadas às pessoas, não recebem cuidado das pessoas (dos dirigentes, dos políticos, da comunidade).

A sociedade grita e ninguém ouve: é urgente implementar uma nova forma de viver. Mas se a sociedade exige uma nova forma de viver, é tempo de mostrar que todos nós somos capazes de adotar uma responsabilidade social e compartida de cuidar. É aqui que reside a sobrevivência da sociedade moderna que, ao invés de pensar somente em receber cuidados, deve adotar comportamentos que fomentem o cuidado comigo mesmo e com os outros. Não há nada mais humano e natural que cuidar. A questão é somente aprender com a formiga da fábula de La Fontaine, e aprender a retribuir esse cuidado!

Recursos consultados:
“Tiempo de cuidados” de Victoria Camps (2021)
Portugal Compassivo:
Compassionate Comunities:

Fotografia de: Cristina Gottardi – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.