Nos últimos tempos, com o crescente fervor em torno da adaptação cinematográfica de Wicked, tenho-me deixado levar pela melodia de Defying Gravity. Esta canção é o momento culminante do primeiro ato, onde Elphaba, popularmente conhecida como a Bruxa Má do Oeste, faz o que muitas vezes sonhamos, mas nem sempre ousamos: ergue-se contra um sistema que é incapaz de lidar com o seu poder e, por isso, a demoniza e fabrica uma narrativa de ódio e medo. Elphaba, com a sua coragem intransigente, é tudo o que o mundo teme: uma mulher com poder e com valores morais.
Mais do que uma heroína ficcional, vejo em Elphaba um reflexo da resistência diária, a voz que protesta no meio do caos e da indiferença, a voz que não renuncia o seu compasso moral. Porque o mundo, com as suas constantes atrocidades, tem o poder de nos desgastar. Não conseguimos indignar-nos por tudo, revoltar-nos contra a ambição desmedida por trás do capitalismo desenfreado, nem perante todas as desigualdades, nem lutar todas as batalhas. A energia que temos é finita e, com o tempo, a maré de desastres consegue o que pretende: cansa-nos, cala-nos, conforma-nos.
Quando finalmente vi o filme, emocionei-me (pela segunda vez) no momento em que Elphaba canta: “And if I’m flying solo, at least I’m flying free.” Há uma verdade dolorosa nessa frase que é impossível ignorar. Resistir, ser livre por ser fiel às nossas crenças, é solitário. Ser a voz dissonante, erguer-se contra o status quo, viver com a recusa de se conformar – tudo isso é esgotante. E ainda assim, o que é a liberdade se não este voo tantas vezes solitário? Elphaba desafia a gravidade, mesmo sabendo que o sistema vai fazer de tudo para a trazer abaixo.
Resistir, ser livre por ser fiel às nossas crenças, é solitário. Ser a voz dissonante, erguer-se contra o status quo, viver com a recusa de se conformar – tudo isso é esgotante.
Penso em nós. Na desolação que sinto perante as alterações climáticas, que vão tornando o planeta mais catastrófico, cantinho por cantinho, e como não vejo as pessoas chocadas, nas ruas, a exigir ação. Parece que reciclar se tornou o máximo que acreditamos sermos capazes de fazer. Penso no quanto nos protegemos com o ceticismo, como se fosse uma armadura contra a dor de ver o mundo a arder. Penso na estagnação em que caímos, anestesiados pelo peso das desumanidades que se tornam tão frequentes, que já não nos chocam. Como se já não houvessem mais lágrimas para chorar as crianças mortas em Gaza, nem mais revolta com o populismo que se alastra como uma praga. Tornamo-nos insensíveis porque sentir é demasiado.
Mas, depois penso em Elphaba, como ela se afirma perante a adversidade. E pergunto-me: como podemos desafiar a gravidade que nos puxa para baixo? Talvez não possamos mudar o mundo num só gesto, mas podemos criar pequenos impactos, um dia de cada vez. Resistir nem sempre é arriscar voar, às vezes, basta ser mais persistente, mais assertivo, manter a esperança e cuidar da nossa comunidade. E, mesmo que pareça solitário, pelo menos poderemos viver de forma honesta connosco próprios. Elphaba lembra-nos que mesmo quando o mundo nos tenta silenciar, devemos falar mais alto. Vamos desafiar a gravidade?
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.