Reflexões sobre a “tirania do mérito”

Sandel critica o preconceito segundo o qual as pessoas têm o sucesso que merecem. As que ficam para trás não só se sentem desprezadas pelos que sobem na vida, como interiorizam um complexo de inferioridade e culpa pelo seu alegado fracasso.

Foi recentemente publicada a tradução portuguesa do último livro de Michael J. Sandel, com o título “A Tirania do Mérito” e o subtítulo “O que aconteceu ao Bem Comum?”. O livro tem muito interesse, até porque apresenta uma explicação plausível para Donald Trump ter sido eleito presidente.

Michael Sandel é professor de filosofia política em Harvard. Nas últimas décadas destacou-se por colocar reservas às teses de Rawls e dos seus muitos seguidores. Sandel valoriza a comunidade contra o individualismo liberal que a ignora.

John Rawls, que dominou a filosofia política no último terço do séc. XX, considerava que, nas atuais sociedades pluralistas, não é possível chegar a consensos sobre uma conceção de bem, pois são muitas e contraditórias as ideias sobre o que é valioso na vida. Por isso defendeu um consenso sobre regras de justiça. No limite, o Estado deveria limitar-se a essas regras, não podendo impor uma determinada conceção de bem.

M. Sandel discorda dessa separação radical entre o justo e o bem. E valoriza o debate ético na sociedade sobre o que é o bem comum.

Uma meritocracia justa?

Em síntese, neste seu último livro M. Sandel critica o preconceito, hoje muito espalhado, segundo o qual as pessoas têm o sucesso que merecem. As que ficam para trás não só se sentem desprezadas pelos que sobem na vida, como interiorizam um complexo de inferioridade e culpa pelo seu alegado fracasso.

Daí não se terem combatido com eficácia as enormes desigualdades de riqueza que nos últimos tempo se têm acentuado. Desigualdades que se agravaram muitíssimo com a pandemia da Covid 19 – mas isso não podia Sandel adivinhar, pois a edição original deste seu livro é de 2020.

Repare-se que, se os mais ricos sentem que merecem a sua riqueza, não há estímulo para políticas públicas de solidariedade social. “A arrogância meritocrática (das elites) reflete a tendência de os vencedores se deixarem inebriar demasiado com o seu próprio sucesso e esquecerem a boa sorte e as circunstâncias favoráveis que os ajudaram o longo do seu percurso” (p. 34).

Uma saída tentada para este problema foi dar prioridade a uma igualdade de oportunidades. Houve progressos nessa linha, mas nunca se poderá atingir uma igualdade desse tipo. Desde logo, como igualizar pessoas com diferentes graus de talento ou de inteligência? Esses dons não são merecidos.

Uma saída tentada para este problema foi dar prioridade a uma igualdade de oportunidades. Houve progressos nessa linha, mas nunca se poderá atingir uma igualdade desse tipo. Desde logo, como igualizar pessoas com diferentes graus de talento ou de inteligência? Esses dons não são merecidos.

A tendência tecnocrática aposta tudo no mercado. A valorização de bens e serviços no mercado depende sobretudo das preferências dos consumidores. Mas quem têm êxito na competição no mercado não pode ignorar os inúmeros fatores que não são da sua responsabilidade e que influenciam os resultados. A começar pelas preferências dos consumidores, que podem mudar.

M. Sandel conclui: “O ideal meritocrático não é um remédio para a desigualdade, mas uma justificação da desigualdade” (p. 146).

A democracia é mais do que a economia

A crença tecnocrática nos mercados, afirma Sandel, “remove o debate moral do debate público e trata as questões ideologicamente controversas como se fossem questões de eficiência económica, uma matéria reservada aos peritos” (p. 28).

A qualidade da própria democracia pode estar em causa. “Se a democracia não é mais do que a economia por outros meios, se se reduz a uma questão de somar os nossos interesses e preferências, então o seu destino não depende dos laços morais dos seus cidadãos”. Ora “o bem comum só pode ser alcançado se decidirmos em conjunto com os nossos concidadãos sobre que propósitos e objetivos são dignos da nossa comunidade política” (p. 264).

Preguntar-se-á: então como fica salvaguardada a liberdade de cada um, dado existirem na sociedade muitas e variadas noções daquilo que é valioso na vida? M. Sandel não aborda de forma desenvolvida este ponto, mas penso que não discordaria daquilo que posso adiantar como opinião minha.

Diria eu que a liberdade está na possibilidade de cada um contribuir para o debate ético que se trava na sociedade. Cada um pode discordar de um qualquer consenso ético (nunca unânime) a que a certa altura se chegue no debate público sobre um determinado tema; embora derrotado, cada um poderá manter a sua luta em defesa dos seus pontos de vista, sem que por isso seja admissível que sofra prejuízos. Ou não fosse a democracia um regime em que as pessoas concordam em discordar.

Castigo de Deus?

A ideia de que as pessoas merecem o sucesso e o fracasso na vida está muito enraizada, é antiquíssima e tem raízes teológicas, que Sandel refere. O Livro de Job, no Antigo Testamento, denuncia essa ideia. Job sofre inúmeras desgraças. Os amigos dizem-lhe que ele algum grande pecado terá cometido, para que Deus o castigue assim. Mas Job não aceita essa ética de retribuição e proclama-se justo. Deus dá-lhe razão, contra os amigos.

M. Sandel poderia ter referido também a atitude de Jesus Cristo, quando negou que a morte de alguns galileus às mãos de Pilatos seria um castigo divino. “Pensais que esses galileus, que sofreram isso, eram mais pecadores do que os demais galileus? Eu vos digo que não (…). Ou aqueles dezoito sobre os quais desmoronou a torre de Siloé e os matou, pensais que eram mais culpados do que o resto dos habitantes de Jerusalém? Eu vos digo que não”. (Lucas, 13, 1-9).

O grande Santo Agostinho (354-430) defendeu que a salvação depende apenas da graça divina. Na Reforma Protestante, Lutero insistiu nesse ponto; mas a Reforma paradoxalmente “levou à ferozmente meritocrática ética do trabalho que os puritanos e os seus sucessores levariam para a América” (p. 48).

Esse paradoxo explica-se pela doutrina da predestinação de Calvino. Quem seguia esta doutrina pretendia angustiadamente saber se seria salvo ou condenado. Então trabalhar intensamente tornou-se um sinal de salvação, não a origem da salvação.

“A ética protestante do trabalho começou como uma tensa dialética da graça e do mérito, da impotência e da autossuficiência. O mérito acabou, assim, por suplantar a graça” (p. 52).

A dignidade do trabalho

O que é o bem comum? M. Sandel aborda essa questão quando fala da dignidade do trabalho. Citando uma posição de Robert Kennedy em 1968, afirma Sandel que “a dor do desemprego não se reduzia ao facto de o desempregado ter ficado privado de uma fonte de rendimento, mas também ao facto de se ver privado de contribuir para o bem comum”. Os trabalhadores querem “uma oportunidade para obterem o reconhecimento social e a estima que advêm de produzir aquilo de que os outros precisam e valorizam” (p. 241).

Ao encarar o trabalho como reconhecimento, M. Sandel critica a visão economicista que define o bem comum como a soma das preferências e interesses de todos.

Ao encarar o trabalho como reconhecimento, M. Sandel critica a visão economicista que define o bem comum como a soma das preferências e interesses de todos. Essa é uma perspetiva que maximiza o bem-estar dos consumidores. Sandel contrapõe o papel dos trabalhadores como produtores e não como consumidores. E aí lamenta o que classifica de degradação atual do estatuto dos trabalhadores enquanto produtores.

Michael Sandel cita, a este propósito, a encíclica de João Paulo II “Sobre o Trabalho Humano”, de 1981, bem como uma carta pastoral dos bispos católicos dos EUA, de 1986, onde se afirma que todos “têm a obrigação de ser participantes ativos e produtivos na vida da sociedade”, devendo o Estado assegurar que “as pessoas possam contribuir para a sociedade de uma forma que respeite a sua liberdade e a dignidade do seu trabalho”.

O progressismo de centro-esquerda

M. Sandel não é católico, mas revela grande afinidade com a doutrina social da Igreja Católica, nomeadamente quanto aos limites do mercado e à valorização do trabalho humano. Ele refere essa doutrina como sendo imune à “tirania do mérito”, em contraste com posições alegadamente progressistas, mas que acabaram por refletir a ideia de que as pessoas são responsáveis pelo seu êxito ou fracasso na vida.

A mais aguda crítica de M. Sandel vai para políticos como Bill Clinton, a sua mulher Hillary, Barak Obama e Tony Blair. Estes políticos terão adotado políticas e justificações encarnando aquilo que Sandel designa de progressismo de centro-esquerda.

A partir das décadas de 1980 e 1990 estes políticos “começaram a aceitar cada vez mais elementos das críticas dos conservadores ao estado-providência, nomeadamente a sua exigente noção de responsabilidade social”, o que levou a “associar mais estreitamente o direito às prestações sociais à responsabilidade e ao grau de merecimento pessoal dos destinatários” (p. 63).

Hillary Clinton foi mais longe e na sua campanha eleitoral contra Trump classificou metade dos apoiantes do seu opositor como “um bando de deploráveis” (p.142). Compreende-se o ressentimento contra as elites por parte de um grande número de americanos. Foi este ressentimento que Trump habilmente explorou, levando-o à vitória eleitoral em 2016. “Ao contrário de Barak Obama e de Hillary Clinton, que falavam constantemente de ‘oportunidades’, Trump raramente mencionou essa palavra. Em vez disso, falava descaradamente de vencedores e perdedores” (p. 35).

A obsessão pelas universidades

M. Sandel é professor em Harvard. No entanto, ele faz uma crítica contundente à obsessão dos jovens americanos que pretendem ter um lugar nas universidades mais prestigiadas, como é Harvard. Mas apenas cerca de 4% dos estudantes dos EUA frequentam “estas instituições hiperselectivas” (p. 207). O que se traduz numa multidão de jovens frustrados, até porque, seguindo a “tirania do mérito”, são levados a acreditar que são culpados do seu falhanço.

Comenta M. Sandel: “Esta reordenação do ensino superior em que os vencedores arrebatam tudo era indesejável por duas razões. Em primeiro lugar, reforçou a desigualdade, pois as universidades que tiveram um melhor desempenho na lotaria da seletividade tendiam a ser, no geral, aquelas que apresentavam a maior proporção de estudantes ricos. Em segundo lugar, colocou um preço lesivo aos vencedores” (p. 208).

Os alunos de M. Sandel em Harvard estão convencidos de que foi graças aos seus esforços – intenso estudo – que conseguiram entrar nesta universidade. Sandel procurou fazê-los ver que em jogo estiveram muitos outros fatores que nada têm a ver com o mérito pessoal dos estudantes. Mas sem êxito – está entranhada no espírito dos alunos que eles merecem ter sido admitidos em Harvard.

É provável que a corrida dos estudantes para acederem a um lugar nas melhores universidades (que levou até escandalosas fraudes) tenha feito M. Sandel dar-se conta dos efeitos negativos da “tirania do mérito” na sociedade americana.

Por isso ele apela a reconhecermos que, por muito que nos esforcemos, não somos completamente autossuficientes; viver numa sociedade que aprecia os nossos talentos é um acaso da fortuna e não um mérito próprio. Um sentido agudo das contingências pode inspirar uma certa humildade. Tal humildade “é o início de um caminho que nos traz de volta da ética brutal do sucesso que nos separa. Aponta para além da tirania do mérito, para uma vida pública menos rancorosa e mais generosa” (p. 265).

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.