Recebestes de graça, dai de graça

A boa notícia é que há uma componente da lotaria social que é manipulável e cabe-nos a nós fazer o que está ao nosso alcance para facilitar os percursos daqueles com quem nos cruzamos.

“Sê a mudança que queres ver no mundo”. Já todos nos sentimos inspirados por esta frase de Mahatma Ghandi. Lembra-nos que todos temos o poder para mudar o mundo. No entanto, às vezes somos tão assoberbados com catástrofes a nível global, que nos sentimos paralisados e desacreditados que uma pessoa sozinha pode fazer a diferença.

Ao mesmo tempo, o ser humano pergunta-se qual o propósito da vida e como o cumprir. São questões existenciais que parecem fazer parte da natureza humana, mas às quais poucos conseguimos responder. Vivemos o presente na ansiedade da busca de um propósito que havemos de alcançar, não hoje, mas no futuro.

Enquanto isso, não vemos que a oportunidade de pôr os nossos talentos a render esteve sempre lá. Sejam cinco, dois ou um, são suficientes e representam a riqueza que somos, da qual geralmente conhecemos apenas uma mínima parte. Não dependem do mérito, nem de recompensas. São-nos postos à disposição de forma livre e gratuita.

“Recebestes de graça, dai de graça”. No Evangelho de Mateus, Jesus dirige-nos este forte convite. Pede-nos que conheçamos profundamente os talentos que nos são oferecidos para que possamos multiplicá-los e pô-los ao serviço do outro.

Vivemos o presente na ansiedade da busca de um propósito que havemos de alcançar, não hoje, mas no futuro.

Ao procurar compreender o conjunto de talentos que tenho nas minhas mãos ao dia de hoje, fui confrontada com a sua unicidade. São únicos no seu conjunto, porque são fruto da minha herança genética e contextual, de como estas foram influenciadas por mim e pelo meu ambiente, de forma premeditada ou não, desde que nasci até aos dias de hoje.

Cresci numa família estável, tive uma infância feliz, vivi num bairro seguro, com uma família grande, numa casa muito confortável. Nunca me faltou nada. Nunca tive de omitir a minha religião, classe social, ou orientação sexual para me sentir incluída. Nunca receei que a fotografia do meu currículo me colocasse em desvantagem face a outros candidatos. Estudei, trabalhei, viajei, trabalhei, despedi-me, voltei a viajar, voltei a trabalhar. Sempre por opção própria. Fui-me cruzando com pessoas de diferentes origens e fui colecionando novas perspetivas de ver o mundo. Não melhores, não piores, apenas diferentes. O que é que significa ter tido estas experiências? Em parte, significa que sou uma sortuda. Do outro lado da moeda, está o peso da responsabilidade: cada um de nós, na sua posição particular, com as suas características e no meio onde se insere, é a única pessoa capaz de influenciar a mudança que quer ver no mundo.

Assumir o compromisso de pôr os meus talentos ao serviço da humanidade pressupõe que os conheça, o que pode ser um exercício difícil, especialmente quando estes nos colocam numa posição privilegiada. Na verdade, o ser humano tem mais facilidade em identificar as suas dimensões que o colocam na margem, do que as que o colocam no centro. Por natureza, definimos o ‘normal’ a partir da nossa própria realidade e dos nossos círculos de proximidade, resultando num preconceito inconsciente em relação a qualquer outro que aí não se insira. Julgamos e exigimos com base na nossa própria medida. Somos cegados pelo nosso próprio contexto e não somos capazes de reconhecer os nossos privilégios. Por vezes nem queremos – ter de atribuir as minhas conquistas, sejam pessoais ou profissionais, não só ao meu trabalho, mas ao contexto em que cresci, requer alguma dose de humildade.

Um primeiro passo para usarmos os nossos talentos da maneira certa passa por vivermos gratos, rompendo as nossas barreiras de méritos e de “dignidade”, e dando lugar à compreensão, empatia e compaixão.

Embora gostasse de pensar em mim como consciente dos meus privilégios, sem dúvida que tomo muitos como certos. Ainda assim, sei que a minha lotaria social me colocou muito à frente na “corrida”. Só que isto não é uma corrida. Não há competição quando todos corremos percursos diferentes. A boa notícia é que há uma componente da lotaria social que é manipulável e cabe-nos a nós fazer o que está ao nosso alcance para facilitar os percursos daqueles com quem nos cruzamos. Cabe-nos tirar o melhor da nossa combinação única de talentos: não os enterrar, não ter medo de os perder, mas multiplicá-los.

Um primeiro passo para usarmos os nossos talentos da maneira certa passa por vivermos gratos, rompendo as nossas barreiras de méritos e de “dignidade”, e dando lugar à compreensão, empatia e compaixão. Isto significa reconhecer que não chegámos aqui sozinhos, significa reconhecer que recebemos de graça. A questão sobre qual o propósito da vida vai continuar a ser colocada. Mas esta atitude de gratuidade, de reconhecer mais o que me põe no centro, do que aquilo que me põe na margem e de procurar pô-lo ao serviço dos outros é essencial na procura desse propósito. Não se trata de descobrir o significado da vida numa epifania, mas de o construir diariamente, pondo sentido e intenção em tudo o que fazemos.

Fotografia de: Ava W. Burton – Unsplash

 

 

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.