Re-almar Portugal

Para caminhar entre as efabulações do passado e as ilusões do presente, temos de levantar a cabeça, reconhecendo as origens, estando conscientes de onde estamos, e mover-nos por aquilo que verdadeiramente desejamos.

Portugal foi submetido a autópsia bastas vezes. É um fenómeno estranho este o de averiguar as causas da morte de organismos ainda vivos. Estranho, mas relativamente comum. Nos tempos recentes, aqueles que com maior mestria empunharam o bisturi sobre Portugal foram Agostinho da Silva, Eduardo Lourenço e José Gil. Num estilo poético e cru, debruçaram-se sobre o país estendido numa cama fria de metal, e apontaram os seus tumores: o clientelismo, o irrealismo, o medo, a mistificação do passado, o queixume, o ressentimento. Estes tumores não o levam à morte – recordemo-nos que o nosso país vive – mas mantêm-no num estado de não-vida, estado latente, em que mesmo com saltos quantitativos nos índices de desenvolvimento, é como um veado paralisado a meio da estrada no seio da noite, encadeado pelos faróis de um futuro que lhe parece inevitável e fatalmente adverso.

Refutando o monopólio das ciências sobre o campo do pensamento, existe entre nós o pressentimento forte de que o que mantém unida uma sociedade é algo que pertence ao campo do indizível, do intocável, uma paixão que a habita, congrega, e lhe concede uma identidade profunda, algo que, à falta de melhor expressão, chamarei de «alma». Esta alma, vertida em mitos, lendas e epopeias, em narrativas «protocoerentes» e «quasi-verossímeis» partilhadas, tem o efeito de agregar o corpo social.

Este retângulo, que se espraia no Atlântico em dois arquipélagos, filho da sua história, e ao qual chamamos Portugal, canta-se hoje como fado sem profundidade, um país para se ver, visitar, habitar, mas sem nada a anunciar, sem nada para dar. É um país com um problema de alma, não porque esta esteja mortalmente ferida, mas porque está esquecida, porque se encontra negligenciada. O fado pode, levianamente, ser visto como mera canção triste, um choro. Mas ficar por aqui é falhar, porque para além da constatação óbvia dos muitos fados alegres, mesmo quando nostálgico, o fado é a tristeza que se canta na esperança da ressurreição. É um lamento da alma, que chora o perdido, mas que se confia ao futuro. O fado é um canto da alma, e a alma é este fenómeno misterioso que nos permite almejar o bem e o eterno, que fere de morte a cortina do fatalismo, e abre espaço ao transcendente no contingente. É da alma portuguesa que precisamos.

Isto é, necessitamos de olhar a nossa história, assumi-la e reconciliar-nos com ela, na sua sombra e na sua glória.

Nesta busca da alma há que cuidar das nossas raízes, podar o tronco de ramos que nos roubam a vitalidade, e expor as folhas ao sol. Isto é, necessitamos de olhar a nossa história, assumi-la e reconciliar-nos com ela, na sua sombra e na sua glória; precisamos de extirpar os sentimentos de mesquinhez, e as tibiezas, que enfraquecem o corpo; e, principalmente, temos de arriscar expor e direcionar as nossas ações, intenções e desejos, para o bem, para a verdade e para a justiça, recusando e rejeitando os mitos do progresso inevitável, da prosperidade económica e da salvação tecnológica. Todos eles – progresso, crescimento económico, tecnologia – são meros meios na aventura maior que é a Humanidade, e tomá-los como fins está a desalmar o nosso país e, em verdade, todo o Ocidente.

Para caminhar entre as efabulações do passado e as ilusões do presente, temos de levantar a cabeça, reconhecendo as origens, estando conscientes de onde estamos, e mover-nos por aquilo que verdadeiramente desejamos. Talvez estas palavras sejam ainda demasiado crípticas, pelo que vos convido a olhar o povo português, e deixar que ele nos guie. Manuel Antunes, pensador do século XX, humanista e sacerdote jesuíta, homem ao qual nenhuma catalogação faz justiça, brindou-nos no pós-revolução dos cravos com uma das mais precisas descrições do «ser português»:

Povo místico mas pouco metafísico, povo lírico mas pouco gregário, povo activo mas pouco organizado, povo empírico mas pouco pragmático, povo de surpresas mas que suporta mal as continuidades, principalmente quando duras, povo tradicional mas extraordinariamente poroso às influências alheias, povo convivente mas facilmente segregável por artes de quem o conduz, é a partir de um povo assim que se torna imperioso iniciar a nova marcha que os acontecimentos do 25 de Abril vieram inaugurar numa das horas mais graves da história de Portugal[1].

É a partir de um povo assim que se pode construir Portugal, porque ele é Portugal. Mas há que encontrar a alma deste paradoxo vivo que é Portugal e, para tal, as definições pouco nos ajudam, pois encerram-nos em polos mutuamente excludentes, catalogando Portugal como pequeno, audaz, espertalhão, descobridor, esclavagista, brando, insurreto, suave… as definições só servem a morte, pois só algo morto aceita definir-se. Só o paradoxo é algo pleno de vitalidade. Não pela proclamação, simultânea e contraditória, de duas verdades antagónicas, mas pela coragem de assumir o real como complexo, e pela audácia de fazer caminho entre polos. É no habitar da tensão que descobrimos a alma, a identidade profunda.

É a partir de um povo assim que se pode construir Portugal, porque ele é Portugal.

Que alma para Portugal? Pode parecer estranho e precoce, mas esta pergunta habita-me desde o tempo das minhas primeiras letras, e de forma mais clara a partir dos dez anos de idade: o que é Portugal? E para responder-lhe tentei de tudo, afirmando a sua singularidade ou denunciando-o como ficção dos homens: horizontes de fé, positivismo, materialismo, niilismo, socialismo, liberalismo, monarquia, oligarquia, social-democracia, utopia camoniana e quinto Império de Vieira e Pessoa. Só recentemente fui capaz de reconhecer a resposta que estava diante dos meus olhos. Certamente nem todos me quererão acompanhar na resposta, mas a verdade não perde a sua validade pela quantidade de adeptos. A verdade é o que fica após a provação dos tempos.

A propósito da sua visita a Lisboa para as Jornadas Mundiais da Juventude em 2023, o Cardeal António Marto convidou o Papa Francisco para visitar Fátima. E o Papa respondeu-lhe desta forma: «Não teria sentido nenhum ir a Portugal e não ir a Fátima, porque Fátima é a alma de Portugal.» Num primeiro momento, considerei esta frase um belo gesto de cortesia, e nada mais: palavras delicadas de um Santo Padre gentil. Hoje, creio que o Papa, consciente ou inconscientemente, tocou numa verdade mais profunda da nossa existência como nação: Fátima é a consubstanciação da alma de Portugal.

Num ermo afastado das grandes cidades, três crianças acolhem uma mensagem para todo o mundo. Quando instadas pelas famílias, pelas autoridades civis e eclesiásticas, a assumirem a falsidade do que diziam, resistiram, não cederam. E o povo acorreu em massa, como um fogo que ninguém sabe bem explicar como se despoletou. Céticos denunciarão a efabulação. Fervorosos crentes proclamarão a evidência. Nada disto me interessa. O que releva é que, num ermo, nasceu um altar para Portugal e para o mundo, onde o que há de mais essencial se encontra, se difunde, e se anuncia: rezar pelo bem e pela paz no mundo, sabendo que tal exige ações concretas de libertação, numa transformação espiritual da nossa imaginação. Esta é uma das formas de descrever a tríade oração, penitência e conversão da mensagem de Fátima.

Com justiça, alguns poderiam acusar-me de ignorar os tintes apocalípticos das três partes do segredo de Fátima: a visão do Inferno, o comunismo como inimigo da fé, o bispo vestido de branco que percorre a cidade em ruínas. Creio que o «segredo de Fátima», tesouro de toda a Igreja, deve ser visto pelo sentido que aponta, mais do que pela sua literalidade. É a isto que nos convidou Joseph Ratzinger, no seu comentário teológico ao «segredo de Fátima».

Fátima une caraterísticas essenciais na nossa história: a periferia que se torna central; a humildade e pobreza dos escolhidos; a ousadia de abarcar o mundo; a revolução que nasce entre o povo (constante na nossa história, desde a fundação até abril de ’74, passando pelas crises de 1385, 1640, 1820 e 1910); a insurreição diante dos grandes poderes; a esperança no futuro.

Aventura, coragem diante da adversidade, abertura esperançosa ao futuro, sabiamente enraizada na nossa relação com o transcendente. E, ainda mais importante, num assumir que temos «Mãe», uma mãe que nos apresenta o seu Filho, e que nos recorda que somos irmãos. Eis Fátima como hermenêutica da nossa história. Eis a alma portuguesa, como dom de Deus para o mundo.

 

[1] Manuel Antunes, Repensar Portugal, Lisboa, MULTINOVA, 1979, p.37. Acessível em: http://www.lusosofia.net/textos/antunes_pe_manuel_repensar_portugal.pdf

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.