Como ninguém quer passar por ignorante, engolem-se estas pílulas açucaradas, estes placebos de pensamento e conhecimento, fornecidas pelo tudólogo, que do alto do seu ‘ar sabedor’, da sua indignação revoltada e dos seus gritos estridentes, as procura impor como se de uma receita mágica se tratasse.
Mais um ano se aproxima do seu fim e, como tem sido tradição, comemorou-se a 21 de novembro (terceira quinta-feira do mês) o Dia Mundial da Filosofia. A UNESCO mantém o seu esforço de valorização desta área intelectual, salientando que é “uma disciplina inspiradora, bem como uma prática quotidiana que pode transformar as sociedades.”[1]
Na minha intervenção de há um ano, a propósito do Dia Mundial de Filosofia, apresentei um dos pilares – o achismo[2] – daquele que, a meu ver, constitui um dos maiores obstáculos à comunicação genuína entre as pessoas e as comunidades, a tudologia. Dando continuidade a essa reflexão, centro-me, agora, num segundo pilar: o do coisismo.
Pode começar-se por distinguir coisismo de coisificação, na medida em que enquanto este procura objetivar ou reificar algo, isto é, torná-lo numa coisa concreta; aquele designa uma muleta ou chapéu linguístico sobre, ou sob, o qual se suporta ou inclui tudo o que se queira. Algumas variações do coisismo encontram-se no ‘tipismo’ e no ‘cenismo’, onde os termos ‘tipo’ ou ‘cena’, tal como a palavra ‘coisa’, introduzem uma dimensão de indefinição, incerteza e imprecisão, que pode ser, ou não, deliberada. Graças à sua versatilidade, estas palavras podem colmatar falhas lexicais, pois tudo pode ser uma ‘coisa’, um ‘tipo’ ou uma ‘cena’. Porém, podem igualmente conduzir ao grande malefício de reduzir o pensamento e a linguagem ao simplismo extremo, extirpando-os de precisão, rigor, subtileza e complexidade. Daí a sua verbalização consistir, muitas vezes, num mero ar quente saído da boca do falante. A banalidade inerente plasma-se em expressões como “uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa” ou “esse é o tipo de cena que os coisistas tratam.”
Podem distinguir-se, pelo menos, dois níveis de coisismo. Chamemos-lhes a versão popular e a versão sofisticada. A primeira, encontra-se bem plasmada no famoso sketch dos Gato Fedorento “O Filho do Homem a Quem Parece que Aconteceu Não Sei o Quê”[3]:
Luís Miguel: Eia pá! Quando eu chego lá, tipo, o bacano, já tava, epá, mêmo a atrofiar, tipo mêmo naquela! E eu começo tipo, epá, a curtir a cena, mas epá, tipo na minha para ver como é que a cena do bacano desenvolvia! Epá, só que o gajo depois começa tipo lá e pá com cenas e eu começo, epá fogo, olha aí, man! Fogo, olha aí, qual é a tua, man!?! E gajo: epá, mas estás-te a passar ou quê? E eu: fogo! Eu estou-me a passar? Tu estás aí com cenas, man! E o gajo: tu é que estás com cenas, man! E eu: eu é que estou com cenas? Tu é que estás com cenas, man! E o gajo: eu é que estou com cenas? Tu é que estás com cenas, man! E eu: eu é que estou com cenas? Tu é que estás com cenas, man! E o gajo: Hello! E eu: dahh!
Pai: Psst! Ó Luís Miguel! A tua mãe diz que é preciso ir lá ao coiso que é para resolveres lá o problema derivado da questão, pá.
Luís Miguel: Fónix, man! Mas eu… eu agora estou aqui, tipo, pá, a meio de uma cena, man!
Pai: Hã?!? Epá, ó Luís Miguel, tu… não se percebe nada do que tu dizes, pá! Tu… às vezes, dá, dá… dá a sensação que tu não és capaz de manter um, um… uma espécie de um… epá, com as pessoas. Hum!? Ah![3]
Na segunda, encontram-se os jargões técnicos (bem expressos nos múltiplos acrónimos usados diariamente, e.g., ‘HDD’, ‘SQL’, etc.), as frases-feitas (e.g., ‘a minha liberdade termina onde começa a do outro’, ‘isto é do tempo da outra senhora’, etc.) e as expressões da moda (e.g., ‘é preciso ser disruptivo’, ‘devemos ser pró-ativos’, etc.). Estes podem ser válidos em contextos específicos e surgirem por necessidades justificáveis, mas, a sua difusão e multiplicação de usos, acaba por torná-los numa caricatura de si mesmos. Cascas vazias sem conteúdo, usados pela pessoa que não pensou muito sobre o assunto, mas cujo uso, espera, lhe possa garantir a concordância imediata de outrem, que, igualmente, não pensou na questão ou a ignora completamente.
Mais perverso é o uso dos jargões e frases-feitas enquanto meios de rejeição e bloqueamento de reflexões diferentes, servindo de ferramentas de compressão de pensamentos complexos em fórmulas breves, simplistas e fáceis de memorizar. Neste caso, convertem-se em armas ideológicas desenhadas para controlar, e até eliminar, a capacidade de se pensar de um modo diferente. Pense-se no uso fácil e banalizado de termos complexos e de grande densidade histórica como ‘racismo’, ‘fascismo’, ‘nazismo’, etc., empregues como rótulos fáceis para tudo quanto nos desagrada. Por exemplo, quando alguém afirma: “vivemos numa ditadura, pois só neste país os polícias agem como fascistas multando alguém só porque estacionou em cima do passeio.” Ora, como é óbvio, um polícia que cumpre a sua função não pode ser comparado a um fascista que policiou campos de concentração. Os usos relaxados e vagos destes termos fazem com que eles percam a sua gravitas e desvalorizem todos quantos sofreram (e sofrem) efetivamente de cada um desses males.
Este segundo nível encontra-se em todo o lado. Na conversação quotidiana (pois todos precisamos de serfashion e de acompanhar as novas trends); na educação (onde a gamificação se torna fundamental para que os alunos não fiquem bored e o target educativo do desenvolvimento das multiple intelligences se possa concretizar. Devemos, para tal, recorrer à flipped classroom); nos negócios e no marketing (é nuclear fazer o match perfeito entre as hard e as soft skills, pois só assim se promove o engagement da equipa e se obtêm relações win-win com os clientes); na ciência e na tecnologia (com o advento de disruptive technologies podemos criar uma value network que fomente o workflow e a datification da nossa organização), etc.
Seja na versão popular seja na sofisticada, o objetivo é o mesmo: produzir ruído, causar impacto, preencher espaço, mas sem com isso se pretender dizer nada de fundamental e fundamentado. Como ninguém quer passar por ignorante, engolem-se estas pílulas açucaradas, estes placebos de pensamento e conhecimento, fornecidas pelo tudólogo, que do alto do seu ‘ar sabedor’, da sua indignação revoltada e dos seus gritos estridentes, as procura impor como se de uma receita mágica se tratasse.
Seja na versão popular seja na sofisticada, o objetivo é o mesmo: produzir ruído, causar impacto, preencher espaço, mas sem com isso se pretender dizer nada de fundamental e fundamentado.
Receita que, na maioria das vezes, não passa de um conjunto de vaguezas e banalidades que em nada contribuem para a clarificação do diálogo. A filosofia, enquanto disciplina preocupada com o rigor e precisão linguística, alerta e ajuda a desenvolver competências que permitam, a todos quantos o desejem, identificar e combater este género de falácias. Penso, particularmente, na falácia da vagueza.
Consoante deixei entender anteriormente, não há, per se, nada de errado quando se usa uma linguagem vaga. Quase todos a usamos no nosso discurso quotidiano, quer por ela poder ser uma parte do nosso estilo linguístico, quer por lidarmos com interlocutores que conhecem o contexto próprio em que empregamos determinados termos vagos e, por conseguinte, compreenderem os seus significados específicos. A falácia ocorre quando expressões vagas são mal utilizadas. Desde logo, quando a palavra, ou frase, aparece numa premissa de um argumento e quem o escuta não conhece ou não compreende o que está a ser dito. Ora, uma premissa incompreensível é sempre inaceitável, na medida em que se torna irrefutável por não se saber o que pode ser apresentado como objeção ou contraprova. Por exemplo, para se avaliar a correção do argumento feito por alguém que defende a necessidade da redução do seu horário de trabalho com base na premissa de que está a ‘trabalhar em excesso’, é necessário saber o que é que significa nesta instância ‘trabalhar em excesso’. Qualquer confirmação ou refutação do argumento depende da clarificação desta expressão.
Se se pretende fomentar o diálogo intercultural, bem como compreender e responder aos grandes desafios contemporâneos, consoante pretende a UNESCO, então, combater o coisismo em nós e em toda a parte, será um passo fundamental. Principalmente pelo discernir dos momentos e ocasiões em que a vagueza é legítima e inevitável e aqueles em que deve ser atacada como forma de compressão e de silenciamento do pensamento.
Referências:
[1] UNESCO, “World Philosophy Day.” in https://www.unesco.org/en/days/philosophy.
[2] https://pontosj.pt/opiniao/eu-acho-tu-achas-ele-acha-o-triunfo-do-achismo/
[3] Cf. Gato Fedorento, “O Filho do Homem a Quem Parece que Aconteceu Não Sei o Quê”, in https://www.youtube.com/watch?v=PZ4HZpVo4a4.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.