Eu acho, tu achas, ele acha… O triunfo do ‘achismo’

Um dos maiores obstáculos a um genuíno diálogo encontra-se no que cunho por tudologia. A tudologia manifesta a atitude generalizada de que cada um tem mais do que o direito, a obrigação de expressar as suas opiniões sobre tudo e sobre nada.

No fim do dia não achemos tanto… tanto… tanto… que acabemos por perder o conhecimento, o poder de ação e a nossa própria identidade.

 

No passado dia 16 de novembro comemorou-se mais um Dia Mundial da Filosofia, este ano sob o tema “reflexão filosófica num mundo multicultural”. Tem sido apanágio, desde a sua criação em 2002, dedicar o dia à promoção e construção de sociedades mais tolerantes, respeitosas e inclusivas, de modo a fomentar um diálogo intercultural racional, aproximador dos seres humanos. Um dos maiores obstáculos a um genuíno diálogo encontra-se no que cunho por tudologia. A tudologia manifesta a atitude generalizada de que cada um tem mais do que o direito, a obrigação de expressar as suas opiniões sobre tudo e sobre nada. Tanto mais que, quem não sabe de nada, pode falar de tudo (este poderia ser o mote tudológico). Basta abrir as secções de comentários dos jornais online, entrar nas redes sociais ou aceder ao youtube para encontrar inúmeros exemplos e provas.

Aí os tudólogos, estes especialistas de tudo e nada, epidérmica e instantaneamente insultam, criticam e apresentam soluções mágicas simplistas para todos os problemas e decisões da sociedade. Desse modo, combinam o desejo de usufruir das oportunidades de falar, disponibilizadas pelas novas tecnologias, com a ‘obrigação’ de ter uma opinião. Contudo, a tudologia mais do que uma patologia individual é uma família de patologias que inclui o achismo, o coisismo, o tostamistismo e o caracoroísmo. Veja-se o caso do achismo.

O achismo, ou ‘opinionite crónica’, traduz o desejo perpétuo de apresentar opiniões meramente assentes na subjetividade individual. Ele dá corpo à denúncia de Isaac Asimov acerca da “falsa noção de que a democracia significa que ‘a minha ignorância é tão boa quanto o teu conhecimento’” (“A Cult of Ignorance”, Newsweek, 1980, 19), ou a recorrente confusão entre direito e valor de opinião. O primeiro é popularmente expresso por frases como “eu tenho direito à minha opinião” ou “eu digo o que me apetecer e ninguém tem nada a ver com isso”. Tais afirmações não estão erradas, na medida em que refletem o direito legal e político, garantido nas democracias ocidentais, à liberdade de expressão. Cada um tem, efetivamente, a possibilidade de se expressar como bem entender, salvaguardando as limitações previstas pela lei relativas à injúria e à ofensa. Contudo, do direito à opinião não se segue o valor da opinião. Aquele designa apenas a tomada de uma posição que pode estar certa ou errada, ser inteligente ou estúpida. As opiniões estúpidas podem ser democraticamente expressas, mas o facto de serem veiculadas no espaço público não as torna valiosas ou inteligentes.

O valor de uma opinião depende do seu conteúdo, de quem a formula e, sobretudo, da existência de razões para apoiar a sua credibilidade. As opiniões podem, e devem, ser comparadas, desafiadas e questionadas com vista a determinar o seu valor. Exigem-se, para tal, critérios epistémicos de justificação para determinar, o mais objetivamente possível, a sua veracidade ou falsidade. Platão estabeleceu, a este respeito, a distinção fundamental entre doxa e episteme ou opinião e conhecimento.

O valor de uma opinião depende do seu conteúdo, de quem a formula e, sobretudo, da existência de razões para apoiar a sua credibilidade. As opiniões podem, e devem, ser comparadas, desafiadas e questionadas com vista a determinar o seu valor.

A confusão, denunciada por Asimov, dilui esta distinção, subsumindo o conhecimento à opinião e dando corpo às doutrinas antirrealistas que veem na sinceridade o ideal epistémico. Para estas, o mais importante é que o indivíduo ao falar o faça honestamente, valorizando mais a fidelidade a si mesmo (e.g. os seus sentimentos e opiniões) do que aos factos. É pretensão do subjetivismo transformar o indivíduo na fonte de autoridade última dos seus conhecimentos, no titereiro da realidade que a dobra e faz mover consoante a sua vontade e desejos. Mais importante do que os factos é a narrativa, a estória bem contada, consistente, entusiasmante e divertida. Nesta, a verdade constrói-se não a partir da realidade, mas dos nossos desejos.

É o caso emblemático de Elizabeth de Knoxville, tornada famosa pelo youtube. Quando entrevistada, após a sua tentativa gorada de invadir o Capitólio americano em 2021, expressava a total indignação de ter sido pulverizada com gás lacrimogénio pela polícia, que a impedia de realizar ‘pacificamente’ a ‘revolução’, ou seja, obstruir o normal percurso de validação dos resultados das eleições presidenciais. Mais do que a ingenuidade de Elizabeth considerar ser um direito seu interferir, sem qualquer incómodo, num processo constitucionalmente estabelecido, está a noção de que a sua subjetividade, os seus sentimentos de injustiça e desagrado pelo resultado eleitoral, valem tanto ou mais que os resultados objetivos dos milhões de votos que elegeram o candidato que não apoiava.

Como é óbvio, a dificuldade do achismo assenta no paradoxo no qual, ele próprio, se encerra. Se a vontade de cada um é o critério último de validação das opiniões, então, por absurdo, poderemos ter tantas opiniões quantas pessoas e nenhuma forma de as avaliar, passando todas a valer exatamente o mesmo, ou seja, nada. Para além disso, o achista tende a assumir que as palavras são mero ar quente que lhes sai da boca, na melhor das hipóteses, meras expressões ou descrições.

Como é óbvio, a dificuldade do achismo assenta no paradoxo no qual, ele próprio, se encerra. Se a vontade de cada um é o critério último de validação das opiniões, então, por absurdo, poderemos ter tantas opiniões quantas pessoas e nenhuma forma de as avaliar, passando todas a valer exatamente o mesmo, ou seja, nada. Para além disso, o achista tende a assumir que as palavras são mero ar quente que lhes sai da boca, na melhor das hipóteses, meras expressões ou descrições.

A filosofia desempenha aqui um papel crucial. A boa filosofia quer sempre explicar a realidade humana e contribuir para o desenvolvimento da sabedoria e da sua aplicação nas ações realizadas quotidianamente. J. L. Austin alerta para a existência de elocuções performativas, isto é, de formas de falar que não se limitam a expressar ideias ou descrições, mas constituem genuínas ações. Por exemplo, quando dizemos “prometo” (trazer o livro amanhã) e “aceito” (no casamento) não estamos a fazer o relato de uma promessa ou de um casamento. Estamos a realizar a ação de prometer e de casar. Estas ações linguísticas obedecem às regras das convenções existentes e aceites na sociedade, bem como às circunstâncias nas quais invocamos essas regras.

Em suma, o achista olha o mundo exclusivamente a partir dos seus desejos e ideias com vista a forçar os outros a cederem aos seus caprichos, sem ter qualquer consideração para com eles ou para com a verdade dos factos (naturais e/ou sociais). Humoristicamente pode dizer-se que “o prometido é de vidro” e, por isso mesmo, as promessas são quebradas tão facilmente. Contudo, é fundamental manter a noção de que, de facto, “o prometido é devido”, pois ao prometer agimos, comprometemo-nos com essa pessoa. Faltar à promessa é infringir as expectativas e a confiança que o outro depositou em nós e, mais grave ainda, equivale a um desrespeito por nós mesmos. Passamos a apresentar-nos e a ser vistos como uma “pessoa sem palavra”. Logo, não se ache. Pense-se, considere-se, reflita-se criticamente na vida, nos outros e em nós mesmos. Para que no fim do dia não achemos tanto… tanto… tanto… que acabemos por perder o conhecimento, o poder de ação e a nossa própria identidade.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.