Pontos de referência

A utilização de pontos de referência é inevitável quando avaliamos a realidade que nos rodeia.

O programa de doutoramento em que eu estudei tinha muita gente infeliz. Apesar de quase todos os alunos virem de boas escolas em que tinham sido os melhores do curso, era muito raro encontrar alguém feliz naqueles gabinetes escuros de estudante. Era melhor nem perguntar como estava a correr o trabalho e, próximo da altura de ir procurar emprego, houve vários casos de ataques de ansiedade e de depressão. A razão principal para esse estado de espírito generalizado não era nem falta de dinheiro nem problemas familiares, nem tão-pouco demasiado trabalho. Aqueles alunos andavam infelizes porque, pela primeira vez na vida, muita gente que viam à volta deles era melhor que eles, em particular os professores de quem eles ambicionavam tornar-se “colegas”.

Os alunos de doutoramento não são muito diferentes do resto da população. Quase todos os seres humanos usam pontos de referência para avaliar a sua própria condição. E esses pontos de referência são de dois tipos – ou nós próprios no passado (comparação intertemporal), ou outros indivíduos que nos são próximos de alguma maneira. É fácil encontrar exemplos extremos da forma como os pontos de referência que usamos mudam a nossa perceção da realidade: alguém muito rico que perca quase tudo e já “só” tenha um milhão de euros no banco sente-se muito mal, ao passo que uma pessoa normal que ganha um milhão de euros na lotaria fica felicíssima. Ter 18 num exame em que toda a gente teve 19 não é grande coisa, ao passo que ter negativa num teste em que toda a gente chumbou não tira o sono a ninguém.

Quase todos os seres humanos usam pontos de referência para avaliar a sua própria condição. E esses pontos de referência são de dois tipos – ou nós próprios no passado (comparação intertemporal), ou outros indivíduos que nos são próximos de alguma maneira.

Nós também usamos pontos de referência para avaliar o desempenho económico dos países: prestamos atenção ao crescimento económico, que não é mais do que a comparação intertemporal da riqueza criada. Ficamos contentes se estamos melhor hoje do que estávamos há um ano, e ficamos preocupados se acontece o contrário. Definimos países como estando “em desenvolvimento” não tanto pelo seu nível absoluto de riqueza, mas antes por comparação com o nível de riqueza dos outros países (claro que há critérios para definir o que é um país em desenvolvimento, mas esses critérios têm a sua origem na distribuição da riqueza no mundo).

A sensação de uma certa angústia que existe em Portugal hoje em dia tem muito a ver com a comparação que fazemos das nossas circunstâncias com outros países europeus, nomeadamente os que entraram mais recentemente na União Europeia do que nós. Quem viveu a década de 90 em Portugal sente saudades desse tempo em que se estava mais rico (como país) a cada ano que passava.

É difícil escapar completamente à utilização de comparações externas. O nosso cérebro funciona dessa maneira porque lhe é difícil avaliar a realidade sem usar pontos de referência. Mas é importante manter algum controlo sobre esta tendência – sofrer com o que os outros têm chama-se ter inveja e não faz ninguém feliz.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.