O testemunho de um cristão

Será no serviço aos outros, na comunhão verdadeira e no «Vede como eles se amam» - o repto, demasiadas vezes negado e ignorado entre nós - que seremos fermento na massa, sal na terra.

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Há muitos anos atrás uma velha amiga convidou-me a ir rezar numa capela da sua devoção. Recordo a luz suave, a beleza da madeira, das imagens, das flores no altar.

Por essa altura, eu fazia voluntariado na casa das Irmãs da Caridade, na zona J do bairro de Chelas. Começávamos muito cedo, com a celebração da Eucaristia, numa das divisões da casa, transformada em capela. O chão era coberto por um tapete de linóleo, a decoração da parede resumia-se a uma frase: «Tenho sede».

Pedi à minha amiga que não me voltasse a convidar para a sua linda capela. O meu lugar estava escolhido.

Lembro-me destas duas realidades, sempre que sou confrontada com palavras e gestos que me obrigam a refletir sobre a Fé. Uma reflexão que parte do respeito e gratidão que sinto sempre que encontro alguém que dá toda a sua vida por Jesus. É a evidência de uma radicalidade, que nos confirma no Credo que afirmo, no Pai Nosso que rezo.

Sinto igualmente admiração pelos teólogos, isto é, pelos homens e mulheres que dão as suas vidas pelo estudo do mistério de Deus, revelado em Cristo e que o anunciam com verdade. Admiro a capacidade do estudo, do discernimento, do conhecimento que permite citações e referências que nos alargam horizontes de pensamento.

Mas estou convicta de que o anúncio do Cristo Vivo, capaz transformar e fazer novas todas as coisas, acontece de uma forma muito mais fecunda, nas vidas totalmente entregues ao serviço dos mais pobres.

Nas vidas das religiosas espalhadas pelos bairros de lata que existem por todo o mundo; nas vidas dos missionários que enfrentam todos os perigos para celebrar Eucaristia; nas vidas das irmãs que tratam daqueles que ninguém quer; nas vidas escondidas de contemplação e oração; nas vidas dos leigos e leigas que deixam tudo e partem ao serviço da Igreja; nas vidas dos jovens que esquecem as férias e se deixam tocar pela solidão dos idosos em aldeias perdidas de Portugal; e a lista podia continuar, porque é muito real.

A Igreja é de todos e para todos, como insiste o Papa Francisco, mas o mundo em que vivemos terá dificuldade em entender uma Igreja que não esteja focada nas misérias do nosso tempo; terá dificuldade em acreditar numa Igreja que não manifeste a humildade de quem se sabe pecadora; terá dificuldade em aceitar uma Igreja que não lute por ser mais próxima, mais pobre, mais simples.

Deter a «chave» da salvação do mundo, isto é, anunciar a Ressurreição de Jesus, é uma imensa responsabilidade que nos pede uma constante atenção e correção, de preferência fraterna.

As nossas fragilidades humanas e mundanas atiram-nos muitas vezes para o lado errado do caminho que queremos percorrer com Jesus. E quando olhamos com atenção, para esse lado errado, encontramos na maior parte das vezes, o orgulho, a arrogância, até mesmo alguma sabedoria… mas a questão está na descoberta de que, até mesmo essa sabedoria, precisa de uma humildade verdadeira, sincera e testemunhada.

Neste ano, marcado pelas guerras que não terminam, pela instabilidade política, económica e social, pelo progressivo distanciamento entre quem tem e quem não tem, quem é e quem não é, quem pode e quem não pode, neste ano, precisamos mais do que nunca, do testemunho dos cristãos, de todos os cristãos. Será o testemunho das nossas vidas, das nossas palavras e gestos, gente que vai à Missa, que reza, que conhece o pensamento da Igreja, será este testemunho que fará a diferença.

Será no serviço aos outros, na comunhão verdadeira e no «Vede como eles se amam» – o repto, demasiadas vezes negado e ignorado entre nós – que seremos fermento na massa, sal na terra.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.