O Princípio e Fundamento e a maternidade

Como se vive a vida ao som do Princípio e Fundamento? Como se vive a maternidade ao ritmo dessa dança?

5:34 da manhã. Acordo pela enésima vez. Engraçada esta palavra “enésima” que parece ter sido inventada para podermos falar das noites, porque de noite não sabemos bem quem somos ou quantas vezes somos o quê; como se o tempo adquirisse uma dimensão própria não mensurável. Era a barriga. Tentava virar-me como sempre fiz, num movimento automático e bem conhecido do meu corpo, que não precisava de me acordar para seguir os seus desejos. Mas qualquer coisa o prendia, e ele dizia: “Acorda, Joana! As ordens administradas pela central não estão a fazer efeito: os membros esperneiam, mas o core permanece imóvel. Há luzes vermelhas a apitar na consola: o corpo não vira.” E eu lá acordava, contrariada, enquanto suspirava “Isto é muito difícil” e, imprimindo uma força vulcânica, me revirava uma vez mais, sentindo que um macaco mecânico ou um porta-paletes não eram mal-vindos à minha cama.

Por vezes, quando a transferência durava no meu cérebro mais do que o tempo de refilar, deixava que a minha mão te encontrasse na barriga e dirigia-te umas palavras meigas: “Desculpa, Miminho. A mãe está muito contente por estares aí, não há rotações automáticas que o compensem. Não ligues.” Outras vezes, quando o sono se cansava de mim, pensava que faltava pouco para a tua dança se tornar assíncrona da minha, para o corpo rodopiar conforme seu desejo. Mas então, talvez os meus braços já não fossem só membros que esperneiam, ocupados que estariam a embalar-te. Talvez o silêncio se preenchesse com a tua voz, talvez eu e a noite estivéssemos condenadas a uma íntima e profícua amizade.

E foi então que voltei a ouvir a voz do Princípio e Fundamento*. Desde que o conheço que insiste em me falar: “O Homem é criado para louvar, reverenciar e servir a Deus Nosso Senhor.”

Quantas horas já passei a espreitar estas palavrinhas ao longe, como criança no recreio, atrás de um poste, olhos bem abertos, a tentar entender o seu significado. Louvar. Reverenciar. Servir. “Devem ser importantes” — lembro-me de pensar — “se guardam os segredos da Criação.”

E aos poucos, com a vida, as palavras foram ganhando umas traduções cá dentro, daquelas que não se pode confiar para copiar para trabalhos, porque a Palavra é viva e hoje veste-se assim, mas, amanhã, sabe-se lá como deseja aparecer. Não sei se Santo Inácio ficaria descabelado com elas, mas algo me diz que nesta fase ele já não estava muito preocupado com penteados. E também não tinha assim tanto cabelo.

Como se vive a vida ao som do Princípio e Fundamento? Como se vive a maternidade ao ritmo dessa dança? As ideias atropelam-me enquanto podem ser livres, porque a realidade ainda não as defraudou.

Louvar: “Amar o que existe”, como dizia um bom amigo Teu. E não perder tempo a amar o que não existe, já agora. Ser capaz de abraçar o que nos acontece com alegria e gratidão. (Emprestas-nos a Tua criatividade?). No fundo, acolher tudo à Tua procura, como quem joga às escondidas e gosta de ganhar. Viver as dificuldades com a playlist de um Pai que grita “Tu és a minha filha muito amada.” Descobrindo que este tema em loop, alojado no coração, pode transformar tudo.

Como se louva nas noites sem pregar olho? Como sobrevive este olhar embeiçado a um bebé que chora sem cessar?

Como convive a alegria com a insegurança de não perceber nada do que é para fazer? Como se acolhem os desafios das doenças, dos acidentes? Como se sorri quando um filho sofre e o coração está apertadinho? Que melodia pode acompanhar uma partida cedo demais?

Como convive a alegria com a insegurança de não perceber nada do que é para fazer? Como se acolhem os desafios das doenças, dos acidentes? Como se sorri quando um filho sofre e o coração está apertadinho? Que melodia pode acompanhar uma partida cedo demais? Como se vive interiormente a liberdade de um rebento que é nosso mas não é nosso, que queremos criar à nossa medida, moldar às nossas expectativas? Como deixar voar este presente mágico, que tem o seu próprio brilho, o seu próprio caminho, sem a tentação de o agarrar?

Reverenciar: Ter Deus no centro, em comunhão com os meus irmãos. Que é como quem diz: não deixar que nada nem ninguém ocupe o lugar de Jesus em mim. Nem querer ser mais, nem menos, do que aqueles que se cruzam comigo. Numa sede que se sacia de relações equilibradas, gentis e livres a brincar à Trindade.

Como se mantém Jesus no centro de uma vida de tarefas? Como se encontra lugar para  Ele quando o tempo foge? Quando as dúvidas e inseguranças nos desviam para o nosso umbigo? Quando as nossas necessidades parecem gritar um espaço? Como se acolhe tudo o que os outros têm para dizer sem um olhar sobranceiro ou sem nos sentirmos minúsculos? Como aceitar tudo o que esperávamos que eles fizessem ou fossem e não fazem nem são? Como conciliar o amor que pede espaço com o que anseia proximidade? Como partilhar a fragilidade sem nos partirmos aos pedaços? Como comunicar a nossa verdade sem morrer de vergonha? E sobretudo, como encontrar a paz de não louvarmos nem agradecermos nem fazermos nada de jeito e permanecermos embaladinhos no Teu colo?

Servir: o movimento natural que vem de um coração que louva e reverencia. Que se habituou de tal forma a bater ao som de Jesus, a respirar ao ritmo de Jesus, que já não sabe, não pode, não consegue fazer mais do que servir. Arrebatado de tal forma pelo olhar amoroso de Deus, que não sabe, não pode, não consegue olhar o outro se não com esse Olhar que serve. Alegremente. Energicamente. Plenamente confortável na sua incompetência para o fazer, porque se sente habitado. Um coração que, no fundo, se limita a bater sem atrapalhar o Maestro.

E aqui poderia vir todo um tratado. Talvez não seja sobre outra coisa, a maternidade. Mas pequenina no recreio observo esta palavra ao longe, enigmática demais, numa coreografia hipnotizante cujos acordes mal ainda pressinto, como se tocassem numa frequência que o
meu ouvido tosco ainda não pode alcançar. “Mas calha bem não ouvir nada”, penso. Algo me diz que eu e o silêncio temos muito para conversar.

6.48. O corpo revira-se. Também se revira e fala o corpinho deste milagre que me pediste para abrigar. “Mãe, partilho a noite e a insónia contigo. Vamos brincar juntos ao Princípio e Fundamento, vida fora.”

Amanhece. Que bela é a luz de presença que acendes no meu corpo vagaroso. E enquanto o meu olhar escurece, até daqui a uns minutos, talvez, sussurras-me que amanhecerá sempre. Que a Tua luz não se apagará sempre que este jogo me parecer utópico demais.

*O Princípio e Fundamento dá início ao percurso proposto por Santo Inácio de Loyola nos Exercícios Espirituais, e tem o intuito de ajudar o Homem a encontrar o sentido da vida:

EE 23:

“O Homem é criado para louvar, reverenciar e servir a Deus Nosso Senhor, e assim salvar a sua alma.

E as outras coisas sobre a face da terra são criadas para o homem, a fim de ajudá-lo a alcançar o fim para que foi criado.

Donde se segue que há de usar delas tanto quanto o ajudem a atingir o seu fim, e há de privar-se delas tanto quanto dele o afastem.

Pelo que é necessário tornar-nos indiferentes a respeito de todas as coisas criadas em tudo aquilo que depende da escolha do nosso livre-arbítrio, e não lhe é proibido.

De tal maneira que, de nossa parte, não queiramos mais saúde que doença, riqueza que pobreza, honra que desonra, vida longa que breve, e assim por diante em tudo o mais, desejando e escolhendo apenas o que mais nos conduzir ao fim para que fomos criados.”

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.