O medo, os filhos e o fantástico

São contos sérios, graves e muitas vezes assustadores, que lhes despertam emoções e as ensinam a lidar com o resto das suas vidas.

Uma das qualidades que mais admiro nas crianças é a coragem. Uma criança passa a infância a sobreviver aos seus medos: medo do escuro, dos dragões, dos monstros debaixo da cama, de barulhos estranhos, das sombras do luar que entram pelas janelas, do corredor sem fim que a paralisa e impede de ir à casa de banho durante a noite. As crianças detestam a noite. Não querem que o dia acabe porque no silêncio da noite vivem uma aventura sem fim. Estão sempre alerta, como pequenos gamos no meio da floresta, desconfiadas com os barulhos, curiosas com o que se passa por detrás de um muros, na constante suspeita de que tudo é possível. E mesmo dormir não é um descanso: têm pavor de pesadelos, porque é precisamente à noite que a imaginação está ao rubro e o inconsciente toma conta da realidade. Ou pelo menos parece. Por outro lado, conforta-as adormecerem a imaginarem que vivem no meio dos hobbits, que os dinossauros falam, e que o fundo do mar está cheio de gente que não é gente, de monstros, e que todos respiram e falam sem engolir água.

Vem daqui, desta dimensão intelectual – tantas vezes desprezada por adultos que não cresceram – a valentia que lhes vai no sangue. O mundo dos nossos filhos é dominado por fantasias que se desenvolvem nos seus cérebros frenéticos a um ritmo muito superior e com mais valor que as competências gramaticais ou matemáticas. É um mundo ou mundos que vêm do nada, dando a ideia de que sempre estiveram ali. Requer alguma coragem viver num universo onde tudo voa, os animais falam, as florestas são encantadas – com tudo o que isso implica – , os elfos e os orgs as personagens principais, em que os gigantes destroem cidades, as árvores caminham ou os dragões são tão banais quanto os cavalos. Requer uma coragem que só as crianças têm. Aquilo que cada uma consegue imaginar que possa ser uma sombra refletida pela lua enquanto se enrosca nos seus cobertores, pode ser aterrorizador ao mesmo tempo que a embala.

O mundo dos nossos filhos é dominado por fantasias que se desenvolvem nos seus cérebros frenéticos a um ritmo muito superior e com mais valor que as competências gramaticais ou matemáticas.

Escreve CS Lewis: Seria ótimo que nenhuma criança, deitada na cama, ao ouvir ou a imaginar que ouviu um ruído, jamais sentisse medo. Mas, se o medo é inevitável, é melhor que a criança pense em gigantes e em dragões do que em meros ladrões. Desconfio que São Jorge, ou qualquer outro paladino armado, é um consolo bem maior do que a ideia de  um polícia.”

Mas hoje confunde-se fantasia com fantástico. O fantástico das lendas e dos contos de fadas vem aliado com a ética e filosofia. Chesterton cita alguns exemplos no seu livro Ortodoxia, onde tem um capítulo dedicado à “Ética na terra dos elfos.” “Jack, o caçador de gigantes”, trata-se de “uma revolta humana contra o orgulho considerado como tal.” Cinderela: é um conto que versa sobre a exaltação dos mais humildes. O conto fantástico que melhor explica a essência do cristianismo, A Bela e o Monstro: “Uma coisa deve ser amada antes que seja digna de amor”. São todas estas histórias, lidas e ouvidas como foram escritas – sem censuras que ofendem o bom senso e o bom gosto e movidas pelo barulho dos tempos –  que brincam na cabeça de uma criança.  São contos sérios, graves e muitas vezes assustadores, que lhes despertam emoções e as ensinam a lidar com o resto das suas vidas. “Não me interessa, porém, nenhum dos estatutos da Terra dos Elfos isoladamente; interessa-me, apenas, o espírito da totalidade da sua lei, o qual aprendi antes mesmo de saber falar e que irei conservar quando não conseguir mais escrever. Interessa-me determinada maneira de encarar a vida, maneira essa que aprendi nos contos de fadas e que, desde então, foi serenamente corroborada pelos factos mais simples.”, concluí Chesterton.

São todas estas histórias, lidas e ouvidas como foram escritas – sem censuras que ofendem o bom senso e o bom gosto e movidas pelo barulho dos tempos – que brincam na cabeça de uma criança.  São contos sérios, graves e muitas vezes  assustadores, que lhes despertam emoções e as ensinam a lidar com o resto das suas vidas.

Ainda sobre os contos de fadas, escreveu CS Lewis: “o país das fadas desperta numa criança um anseio por algo que ela não sabe o que é. Comove-a e perturba-a, enriquecendo toda a sua vida, dando-lhe a vaga sensação de alguma coisa que está para além de seu alcance, e, longe de tornar insípido ou vazio o mundo exterior, acrescenta-lhe uma nova dimensão de profundidade.”

Depois temos a fantasia. A fantasia, baseada em histórias consideradas realistas, pode ser mera armadilha. Como diz CS Lewis, são ficções baseadas em realidades, em que o sucesso, a beleza, a perfeição são o fim, o objetivo último, e ainda por cima realisticamente alcançável. São histórias que transmitem às crianças a ideia de que conseguiriam ser capazes de tudo, de que tudo é possível. No entanto, mais facilmente criam frustração, pois a história é apenas uma ficção com personagens com quem é possível se identificarem.

Ou seja: “A criança quando lê uma história realista, deseja o sucesso e fica infeliz quando termina o livro porque esse sucesso lhe escapa; a criança quando lê um conto de fadas, simplesmente deseja e sente-se feliz no próprio ato de desejar. A sua mente não esteve concentrada em si mesmo, como acontece frequentemente nas histórias mais realistas”.

Ou seja: “A criança quando lê uma história realista, deseja o sucesso e fica infeliz quando termina o livro porque esse sucesso lhe escapa; a criança quando lê um conto de fadas, simplesmente deseja e sente-se feliz no próprio ato de desejar. A sua mente não esteve concentrada em si mesmo, como acontece frequentemente nas histórias mais realistas”.

E que fazemos nós neste mundo real onde vivemos? Ora, entre florestas encantadas e dragões que cospem fogo e a promessa de uma carreira de futebol à medida de Ronaldo ou a possibilidade de vencer o Ídolos ou a ambição da fama fugaz dos influencers, arrisca-se na realidade e abandona-se o fantástico dos dragões e das florestas. Seja por preceito ou por preconceito, por ignorância ou por falta de tempo. Mas abandona-se.

Com isto, as crianças estão a deixar de ter medo. Dormem de luz acesa ou na cama dos pais, não veem escuridão nem imaginam monstros ou fadas porque todos os dias lhes dizem que eles não existem. Pelo contrário, o que existe é a fantasia real. Neste nosso mundo quem tem medo são os crescidos. São aos pais que têm pavor das angústias dos filhos e os impedem de serem eles os corajosos a lutarem sombras à noite ou a salvarem Nárnia do inverno, de ultrapassarem obstáculos e de serem eles os heróis. Os pais, que têm medo das frustrações dos filhos baseadas nas suas ideias estapafúrdias de sucesso e de felicidade. São os pais, que têm pânico de verem os seus filhos crescerem porque sabem que há um dia, por mais tarde que ele venha, em que vão ter de os deixar enfrentar o mundo sozinhos.  E as crianças de luz acesa, sem dúvidas e pequenas frustrações, crescem adultos e jovens medrosos.

Com isto, as crianças estão a deixar de ter medo. Dormem de luz acesa ou na cama dos pais, não vêem escuridão nem imaginam monstros ou fadas porque todos os dias lhes dizem que eles não existem.

Neste nosso mundo, quem tem medo são os mais crescidos. Medo de ir à luta e perder, medo de caírem e não saberem levantar-se, medo de experimentar, de arriscar, de viver. De serem os heróis comuns tal como foram moldados por e para Deus.

Falta-nos o fantástico que molda a valentia e disciplina o medo. Pois, tal como escreve Chesterton, “Os contos de fada não dizem às crianças que os dragões existem, as crianças já sabem que dragões existem. Os contos de fada dizem às crianças que os dragões podem ser mortos”.

Falta-nos voltar aos contos de fadas para deixarmos de ter medo e aprendermos como se matam dragões. São também eles que nos ajudam a criar filhos sem medo do mundo, do futuro e com a esperança que tantas vezes nos falha.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.