O Deus do mapa e o Deus do carro

Há pessoas que acham que Deus não tem nenhuma vontade a nosso respeito. Dizem que Ele se limita a observar e a constatar o que nós decidimos. Acho isto um disparate. Nunca conheci nenhum pai assim.

Terá Deus – lá no Céu – itinerários completos pensados para nós até à nossa morte? Não sei. Há pessoas que até acham que Deus não tem nenhuma vontade a nosso respeito. Dizem que Ele se limita a observar e a constatar o que nós decidimos. Acho isto um disparate. Nunca conheci nenhum pai assim. Pelo menos um pai digno desse nome…

(Eu sei que sou atrevido em tentar perceber a maneira de agir do Altíssimo. Afinal “tanto quanto os céus estão distantes da terra, assim os meus pensamentos estão distantes dos vossos, diz o Senhor” (Cfr. Is 55, 9). Sei perfeitamente que Deus será muito diferente de qualquer coisa que digamos ou escrevamos e que todas as nossas afirmações sobre a acção divina – mesmo as que nos parecem mais adequadas – são apenas “uma maneira de pôr as coisas”… Mas a culpa desta minha curiosidade e investigação é dele, que me deu cabeça e me mandou amá-lo sobre todas as coisas com tudo o que sou (Cfr. Lc 10, 27), incluindo a inteligência.)

Acho difícil sermos cristãos e não pensarmos que Deus tenha “vontades” para nós. Jesus, no Pai Nosso, dizia para pedirmos ao Pai “seja feita a vossa vontade”. Na fim da parábola dos dois irmãos que um pai queria enviar para o seu campo, a pergunta de Jesus é qual deles fez a vontade do pai. No Jardim das Oliveiras, Jesus lutou dentro de si entre fazer a sua vontade ou fazer a vontade do Pai. Cito estes três exemplos mas poderia citar muitos mais.

Algumas pessoas insistem que, se Deus tem uma vontade para nós, há-de ser uma vontade genérica. Não “vontades” específicas. Como um pai que vê o filho partir para o Luxemburgo e tem uma grande vontade que ele seja feliz mas não tem nenhuma vontade concreta acerca do bairro onde o filho vá morar ou do trabalho que venha a desempenhar.

O exemplo é sugestivo mas falha num ponto importante. O pai do filho emigrante não sabe que opções concretas contribuirão para a felicidade do filho. Não sabe o que ajudará mais o filho a crescer como pessoa, se o trabalho de padeiro ou o de carpinteiro. Se soubesse, certamente que passaria a ter vontades específicas para ele. É o caso de Deus. Deus sabe o que é melhor para nós. Conhecendo-o certamente que o quererá. Especificamente.

Creio que, em cada decisão que tomamos onde se joga o nosso bem, não será indiferente a Deus se viramos à direita ou à esquerda. Penso, por isso, que devemos dizer que – aqui e agora – Deus tem uma vontade para cada um de nós. E que essa vontade será a concretização do grande sonho que Deus tem a nosso respeito: a salvação. (Ou seja: a nossa realização de fundo).

Se Deus conhece tudo e tem em cada encruzilhada uma vontade para nós, podemos então imaginar que Deus tenha um “itinerário” que Ele gostaria que seguíssemos durante a viagem da nossa vida aqui na terra até ao dia da nossa morte? Um trajecto ideal? Evidentemente que um tal mapa seria impossível de traçar para nós. Mas não para Deus cuja “eternidade” O deixa fora do tempo, acima dele, numa posição em que pode ver o futuro tão claramente quanto o passado. Parece-me que esta é, pelo menos, uma possível “maneira de pôr as coisas”. O Deus do mapa. Mas se Deus tem assim um itinerário pensado para nós – se usamos este “modelo” – devemos também imaginar Deus constantemente a refazer esse itinerário pois constantemente fazemos escolhas distintas da Sua vontade…

Um outro modelo diferente (uma outra “maneira de pôr as coisas”) é a do Deus que vai connosco no carro durante a viagem da vida. Trata-nos como filhos crescidos. Pôs o carro em nosso nome, passou-nos as chaves para a mão. Não é Ele que vai a guiar. Fica simplesmente ao nosso lado, a seguir viagem connosco. Se quisermos, em cada encruzilhada, ajuda-nos a pensar por onde é melhor seguir. Mas segue connosco onde quer que vamos. Mesmo quando nos metemos por atalhos e nos vemos em trabalhos ele não salta fora do carro. Se acabarmos por ter um acidente e nos ferimos, Ele sofre connosco, até porque vai sentado no “lugar do morto”.

Neste modelo a “eternidade” de Deus não é tanto uma posição que Ele ocupe fora do tempo mas a Sua plena entrada no momento presente. Aliás o amor faz isto de nos fixar inteiramente no presente como se nada mais existisse para além desse momento. Não podemos dizer que um modelo esteja certo e que outro esteja errado, obviamente. Mas podemos pensar qual dos modelos nos ajuda, nesta fase da vida, a vivermos a nossa história de um modo mais responsável. E, sobretudo, o que mais nos ajuda a procurar a vontade de Deus.

Nota do Editor:

Este artigo vem na sequência do texto Deus tem planos B. Juntos, constituem uma reflexão prática sobre a vontade de Deus e o seu impacto na nossa vida.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.