Nómadas modernos em busca da fé

Vivemos numa época de migração em todos os planos da vida: no geográfico, no profissional, no afectivo, no intelectual — e no religioso. Como pode a fé religiosa, com o seu apelo ao intemporal, manter-se em contextos onde tudo é efémero?

O inverno é porventura a estação do ano durante a qual os elementos naturais mais nos compelem a refletir sobre o sentido existencial da vida. Os dias são curtos e as sombras longas; as nuvens escuras escondem-nos o sol e a chuva cai como um pranto frio sobre os nossos rostos. As últimas semanas desta época triste coincidem, não por acaso, com a Quaresma — tempo de reflexão que prepara, fundamenta e antecede a alegria do Domingo de Páscoa. Aos olhos de quem, como é o meu caso, facilmente se comove com os ciclos anuais do clima e da vegetação, toda a paisagem parece um sinal a apontar para a busca do significado religioso da nossa vida.

Para quem guarde tais sentimentos e durante a juventude tenha recebido uma educação profundamente e exclusivamente laica, como foi o meu caso, a observância cristã da Quaresma, com o implícito despojamento do ego que lhe está implícito e a dedicação a atos de altruísmo, sempre impressiona. Poderá mesmo o sentido da vida passar pela renúncia a quem somos, pelo amor a Deus e ao próximo, como dizem os Evangelhos?

Responder a esta questão não me foi fácil, e por isso mesmo tardei mais de quarenta anos até me converter ao catolicismo. Fui, como é apropriado, batizado no dia de Pentecostes de 2014, quando os dias lúgubres de inverno já são memória apenas e as jornadas decorrem sob a claridade libertadora do sol primaveril.

Quis entretanto o acaso que durante as últimas semanas tenha podido conversar longamente com dois bons amigos a respeito de religião. Ela, mulher culta e bem-sucedida de meia-idade, acabava de regressar de um retiro espiritual New Age, inspirado numa doutrina ecléctica auto-denominada Culto da Deusa; ele, homem igualmente culto e bem-sucedido, porém já idoso, acabava de regressar de um retiro espiritual budista. Ambos haviam sido educados na fé cristã, aquela no catolicismo, este no anglicanismo — mas nenhum deles se manteve dedicado ao cristianismo. De resto, tampouco se dedicaram continuamente a qualquer outra fé, antes foram explorando crenças e rituais variados ao longo da vida.

Dir-se-ia que a mentalidade contemporânea ocidental de tal forma se habituou à impermanência das famílias, das instituições, das políticas, dos empregos e das tecnologias que decidiu voltar-se para a transitoriedade na religião que professa.

Estas pessoas, por quem guardo grande estima, tinham percorrido um caminho inverso ao meu: eles afastando-se, eu aproximando-me de Cristo. Porquê? Que buscamos na fé, todos nós?

Esta pergunta assalta-me amiudadas vezes, tantas quantas as que observo a contradição de haver um número cada vez maior de pessoas a afirmarem-se ateias ou agnósticas, ao mesmo tempo em que proliferam os coletivos New Age, os grupos inspirados em religiões asiáticas, os personal coaches com ensinamentos quasi-religiosos, os círculos auto-denominados de neo-paganismo, e os livros de espiritualidade abstrata e de auto-ajuda se vendem em todas as livrarias e estações de serviço. O anelo humano por um sentido religioso parece, sendo assim, não estar a diminuir nestes tempos pós-modernos: parece antes estar em busca de si mesmo — literalmente a si mesmo, um sentido individualista, desligado de tradições, de magistérios, de sagradas escrituras, e sobretudo de instituições formais, hierarquizadas, estruturadas e perenes. Dir-se-ia que a mentalidade contemporânea ocidental de tal forma se habituou à impermanência das famílias, das instituições, das políticas, dos empregos e das tecnologias que decidiu voltar-se para a transitoriedade na religião que professa. Se as famílias se dispersam, migrando ou emigrando; se as carreiras são precárias e obrigam à itinerância entre regiões ou países; se as novidades científicas e espirituais nos inundam pela internet a cada dia que passa, como poderá quem indaga pela verdade religiosa filiar-se numa ecclesia com quem comungue assiduamente, ou debruçar-se sobre um magistério quando tantas outras doutrinas alternativas pedem atenção? O frenesim da mudança e a liquidez do quotidiano parecem conspirar contra o compromisso, contra a dedicação prolongada a um caminho, seja ele religioso, afetivo, comunitário ou mesmo profissional. Quando a vida quotidiana parece efémera, o infinito afigura-se impossível de encarar.

O frenesim da mudança e a liquidez do quotidiano parecem conspirar contra o compromisso, contra a dedicação prolongada a um caminho, seja ele religioso, afetivo, comunitário ou mesmo profissional. Quando a vida quotidiana parece efémera, o infinito afigura-se impossível de encarar.

Sendo assim, estando o compromisso duradouro excluído das possibilidades de vida, que opções religiosas restam a quem somente pode — ou apenas quer — dedicar-se episodicamente à meditação, ao culto, à indagação espiritual, sem vínculos a quaisquer doutrinas ou comunidades de fiéis? Por motivos práticos, as opções terão de ser individuais e transitórias. Hoje pode ser-se budista, amanhã taoista, depois de amanhã pagão (há centenas de denominações a reclamar tal título), daí a uns dias agnóstico místico — sempre ao sabor do momento, do lugar, e da conveniência ou das possibilidades.

Sendo assim, por que motivo a tantas pessoas esta itinerância mais cedo ou mais tarde não passa por, e se mantém, no seio do cristianismo? Será por uma questão de princípios, ou por uma questão de meios? Inclino-me mais para a segunda resposta.

O cerne da mensagem cristã — a súmula de toda a fé — consiste em amar a Deus e ao próximo como a si mesmo. Este princípio é de bom grado subscrito por todos, exceto por quem não quiser amar — nesse caso causando enorme sofrimento psicológico a si mesmo e aos demais. Ser cristão é, fundamentalmente, amar; e no plano imaterial todos estamos em condições de sê-lo.

Sucede que somos também criaturas materiais. Criaturas que são hoje mais itinerantes do que nunca na história da humanidade. Os nossos antepassados caçadores-recolectores poderiam ser nómadas, mas levavam consigo a sua ecclesia, a tribo com quem partilhavam uma religião. Os nómadas de hoje são-no a título individual, e as suas ideias ainda mais nómadas o são, transportadas instantaneamente por via digital de e para todos os recantos do mundo. No entanto, a vivência plena da fé cristã requer uma dedicação prática, presencial, personalizada, reiterada no seio de uma comunidade viva concreta. E nem todos conseguem reunir na sua vida itinerante condições para tal compromisso.

Antes de me despedir, perguntei aos meus amigos não por questões religiosas, mas práticas. De onde vinham? Onde viviam? A que ofício se dedicavam? As respostas foram idênticas e expectáveis: nasceram num país, residiram em vários outros ao longo de uma vida nómada, trabalharam em diversas profissões muito distintas que lhes exigiram aprender constantemente novas competências. E assim como na vida prática, também na vida espiritual: nunca encontraram condições para se vincularem a uma fé — qualquer fé. Nem sequer àquela em que foram educados. Para muitos nesta época de nomadismo digital vive-se perpetuamente em Quaresma, em reflexão e em busca de esperança, sem nunca encontrar a alegria duradora da Páscoa. Como havermos de estender o amplexo cristão a estes peregrinos sem rumo definido?

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.