Equador

Seremos capazes de voltar a olhar o céu, traçarmos uma rota que nos volte a desafiar e empreendermos mais uma viagem, rumo ao futuro?

Escrevo estas palavras no Centro Cultural Português de São Tomé e Príncipe, sentado numa secretária do Polo da Universidade de Évora, regressado de um almoço bem português, no Café-Restaurante Central, local onde eu e os meus colegas nos deslocamos, diariamente.

A temperatura, alta, de dia e de noite, humedece a nossa pele, amolece o nosso corpo e convoca-nos para pensamentos menos urgentes e fragmentados e, por isso mesmo, mais estruturantes e importantes para a nossa vida. Tudo o que era urgente e incontornável, no nosso velho hemisfério norte, passa a ser relativo nesta jovem latitude equatorial; tudo o que é pouco relevante, nas agendas mediáticas dos nossos climas mais temperados, ganha uma inusitada importância, neste Equador, de onde vos escrevo.

Basta sairmos para uma das, movimentadas, ruas de São Tomé, para pensarmos noutros assuntos, que, raramente, povoam a nossa mente:

  1. Fala-se a língua portuguesa por todo o lado: os novos e os velhos; nos cafés e nos mercados; na biblioteca do Centro Cultural Português e na Roça da Saudade; na areia da praia e na banca de carregamento dos telemóveis; no rádio do velho automóvel e nas televisões dos cafés. Fala-se em português, em São Tomé, como se fala português, no Alentejo: aqui, com o sotaque próprio do crioulo misturado; aí, com aquele timbre, alegre e ritmado, de quem é alentejano. É extraordinário escutar o português de quem é de São Tomé, da mesma forma que é admirável escutar o português de quem é do Redondo ou de Portel. Milhares de quilómetros separam estes dois povos, unidos por esta fantástica língua portuguesa. Que extraordinário património é este que Portugal tem…
  2. Observo a fisionomia dos santomenses e, facilmente, identifico algumas pessoas da minha terra (São Miguel de Machede/Évora): a silhueta dos corpos, os formatos dos cabelos (mais nos homens), as feições das faces (mais nas mulheres), a postura dos andares, o cuidado na forma de cumprimentar, a discrição dos comportamentos e o sentido da família. Ao olhar, com alguma atenção, para os santomenses, concluo que há, em nós, muito deles. Nós, no Alentejo, temos muito destas terra e gente, na nossa genética, no nosso comportamento e no nosso pensamento do Sul. Somos parentes uns dos outros, o que significa que somos da mesma família…
  3. À noite, observo o esplendoroso céu desta ilha e que beleza única está ali disponível: um firmamento singular acessível, a quem se encontra no meio do planeta; um mapa que conduziu e guiou os nossos antepassados que, por aqui, estiveram e aqui deixaram muito do que é, hoje, a realidade; uma janela do universo, através da qual foi possível – através de uma experiência preparada e concretizada pelo astrónomo Arthur Eddigton, na Ilha do Príncipe, há 100 anos (a celebrar no próximo dia 29 de Maio) – comprovar a Lei da Relatividade de Albert Einstein, que revolucionou a Física e o nosso mundo. O céu de São Tomé e Príncipe é um livro da história da humanidade. Nele, estão escritas algumas das páginas mais importantes do nosso mundo, algumas delas em português…
  4. Todos os dias, de manhã, à tarde e ao início da noite, centenas e centenas de jovens, de todas as idades, deslocam-se, em grupos, para as respetivas escolas. De uniforme imaculado, mochila arrumada e sorriso no rosto. Felizes, no seu sonho de estudarem o máximo possível e, com isso, criarem melhores condições para concretizarem os seus sonhos, quase sempre litados pelo perímetro de um arquipélago remoto do Golfo da Guiné. As escolas são poucas para os alunos que existem. Salas com 60 ou 70 estudantes, sentados, aos três, em carteiras com dois lugares é o padrão normal. Um/a professor/a e um quadro negro de ardósia completam a moldura didática de cada aula. Falta quase tudo, exceto o que é mais importante: a vontade de aprender e o gosto em ensinar. A Educação, aqui, é levada a sério, por todos. Ao contrário do que, por vezes, acontece, por aí, onde não falta nada, exceto o mais importante…

Naturalmente que este Equador nos proporciona outros desafios, bem mais comuns: as roças da escravatura, as praias paradisíacas, o café do aroma único, o cacau delicioso, o Tchiloli de Carlos Magno ou o calulu de peixe. Todas estas experiências são intensas. Mas, quando escutamos as palavras das ruas, observamos a fisionomia das pessoas, perscrutamos as estrelas do céu ou observamos o exemplo dos jovens estudantes santomenses, temos que pensar de forma diferente, nomeadamente porque pensamos acerca de nós próprios: do que somos, de onde viemos e para onde queremos ir, enquanto portugueses.

São Tomé e Príncipe leva-nos a pensar no que queremos fazer de nós próprios, dos nossos presente e futuro, enquanto portugueses e parte integrante desta grande família que fala e pensa em português.

Seremos capazes de voltar a olhar o céu, traçarmos uma rota que nos volte a desafiar e empreendermos mais uma viagem, rumo ao futuro? Uma viagem, na qual nos tornemos, novamente, senhores da nossa vida e capazes de nos juntarmos a outros que, connosco, queiram partilhar o mesmo caminho?

No fundo, voltarmos a aprender a sermos donos de nós próprios, numa, arriscada, apropriação de uma definição de educação de Almada Negreiros, personalidade incontornável do nosso universo cultural lusófono e aqui nascido, na Roça da Saudade, bem no meio desta ilha de São Tomé…

Foto: Francisco Nogueira.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.