Não deve haver comunidade cristã nos Açores que por estes dias não esteja em festa. Desde o primeiro domingo a seguir à Páscoa até ao Pentecostes, e nalguns sítios até depois disso, celebram-se as `domingas do Espírito Santo´, uma tradição muito antiga, que se vive de forma particular nos Açores e que entronca na devoção popular ao Divino Espírito Santo, que o povo cristão nestas ilhas vive de uma forma absolutamente ímpar.
As insígnias do Espírito Santo – a coroa de prata com um ceptro e a bandeira com a pomba gravada – são levadas de casa em casa, durante uma semana, guardando-se o melhor quarto da habitação para as receber, enfeitando-as com flores, naturais e de papel, onde, diariamente, se reza o terço, para no domingo ir até à Igreja para “coroar” e as insígnias seguem para outra casa.
A família que “recebe o Espírito Santo” é uma família abençoada que procura acolher a todos – os vizinhos e os mais distantes – nestes dias de festa, num sinal de perfeita inclusão de todos os que queiram participar e viver num ambiente de oração e de ajuda recíproca.
Os dias maiores da festa são os fins de semana de Pentecostes e da Trindade, onde se vivem os sinais mais interessantes deste culto que são, sem dúvida, a partilha e a igualdade. Todos os irmãos são iguais. Todos comungam do mesmo Espírito e todos Dele beneficiam na mesma “quantidade”, sobretudo quando o Espírito se transforma em carne, pão e vinho, em jeito de esmola.
As Festas do Espírito Santo nos Açores, para além do seu significado religioso e cultural, possuem também esta dimensão política e social, refletindo e reforçando valores de comunidade, de partilha e de igualdade. Desde logo, porque criam um sentido de comunidade e pertença, mas também porque reforçam a ideia de igualdade e solidariedade, com raízes em ideais religiosos e no contexto histórico da formação das comunidades açorianas.
A forma como os açorianos celebram e vivem o Espírito Santo confirma um espaço de fraternidade neste culto que o transforma num instrumento essencial para combater o individualismo e a polarização que marcam a sociedade atual. Nesta festa, somos todos chamados a viver com o outro, não para nos tornarmos iguais mas para sermos irmãos, ombro com ombro, vida com vida.
Por isso, esta festa é um verdadeiro laboratório de sinodalidade, de fraternidade e de esperança.
A forma como os açorianos celebram e vivem o Espírito Santo confirma um espaço de fraternidade neste culto que o transforma num instrumento essencial para combater o individualismo e a polarização que marcam a sociedade atual. Nesta festa, somos todos chamados a viver com o outro, não para nos tornarmos iguais mas para sermos irmãos, ombro com ombro, vida com vida.
A festa do Espírito Santo é uma festa da comunidade, que desafia tudo – até as estruturas da Igreja – pois o eu do tamanho do planeta terra, pelo menos nesta bolha que é o Ocidente, que quase nos inibe de estender a mão ao irmão com medo de que possa invadir a sua esfera privada, é ultrapassado pelo nós. Não há outra pessoa num “império” para além de o nós. Um nós que soma e se multiplica, não para dar frutos iguais, mas dons e carismas diferentes. Ninguém “ergue um império” sozinho, como que seguindo aquela ideia do Papa Francisco de que ninguém se salva sozinho, sublinhando que a fraternidade é a “nova fronteira da humanidade” e que, ou somos irmãos, ou nos destruímos reciprocamente, associando a fraternidade à esperança e à paz, destacando que ela não é uma ideologia mas sim um caminho para um mundo mais justo e solidário.
Quando os sinais atuais sugerem a cada um que fique no seu buraco, enclausurado no seu próprio eu, há uma festa do Espírito Santo que nos convida – quase nos obriga – a vir para a rua e a ser comunidade.
Numa altura em que somos todos uniformizados pela sociedade global e vivemos esta formatação de pensamento e de gestos, inspirados e partilhados nas tão propaladas bolhas, remetidos a uma ´sozinhês´ individualista, vivendo porta com porta sem nos conhecermos ou tratarmos sequer pelo nome, a festa convida-nos a trabalhar juntos, a sermos juntos, a construirmos juntos. Todos por igual, porque todos irmanados no mesmo Espírito, convocados por Ele e seguindo-O sempre.
Por isso, esta festa desafia tanto as estruturas: as da Igreja e as da sociedade. Houve tempos, mesmo, em que a Igreja diocesana procurou “evangelizar” esta festa, porque as “irmandades” que a promoviam estavam a “desvirtuar-se”. Não correu bem. A purificação é precisa mas é necessário que ela seja ditada pela força do Espírito e não pela autoridade. De forma muito clara, a força constitutiva destas festas é a fraternidade e não a autoridade. O poder aqui é serviço e serve o irmão. Como deveria ser em todas as estruturas que devem pautar a sua missão, sempre tendo como horizonte o bem comum.
Hoje, porventura mais do que nunca, quem estuda os Açores, e em especial a sua religiosidade, precisa de conhecer esta festa e o seu sentido para perceber a enorme capacidade dos açorianos em poder imaginar Deus na sua completa definição de amor. Os próprios açorianos precisam do Espírito Santo para se perceberem como gente e para se afirmarem como uma sociedade diferente, onde todos lutam por todos e todos cuidam de todos. Mas não seria pior que todos nós, independentemente de termos nascido nestas ilhas ou não, pudéssemos olhar para esta festa com outros olhos e fizéssemos dela um espaço de aprendizagem para a vida em sociedade e em Igreja. Ignorá-lo seria romper com o sensus fidei do povo. E isso não seria apropriado, quando tanto se fala de sinodalidade.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.