Defender a vida entre o princípio e o fim

É importante dar prioridade ao cuidado pela vida dos nascituros e dos doentes terminais, mas igualmente ao cuidado pela vida dos que, já tendo nascido, não são respeitados na sua dignidade.

Numa carta elaborada na reunião de outono, que acompanhará o documento orientador para as eleições de 2020, os bispos dos Estados Unidos afirmaram que “a ameaça do aborto continua a ser a principal prioridade”, quando se trata de escolher entre diferentes propostas políticas. Os bispos afirmam ainda que “ao mesmo tempo, não podemos descartar ou ignorar outras ameaças graves à vida e à dignidade humanas, como o racismo, a crise ambiental, a pobreza e a pena de morte”. Com efeito, o episcopado norte-americano não diz que estes últimos temas não devam pesar nas escolhas políticas dos cidadãos católicos, mas claramente considera que a questão do aborto deve ter prioridade sobre estes, na hora de votar.

Esta posição representa, de facto, algo de muito comum na vida da Igreja Católica. Durante as últimas décadas, no imaginário de um católico, a expressão “pró-vida” tende a remeter para problemas ligados ao aborto e à eutanásia. Em Portugal, as grandes mobilizações por “causas públicas” organizadas por instituições católicas nas últimas décadas têm estado quase sempre ligadas a questões em torno da despenalização da eutanásia ou aborto. Isto apesar de a nossa Conferência Episcopal, a avaliar pelos documentos publicados nos últimos anos, e em particular em Um olhar sobre Portugal e a Europa à luz da doutrina social da Igreja, mostrar ter uma conceção bem mais abrangente da dignidade da pessoa humana e do direito à vida, a proteger politicamente.

Tal como os nossos bispos, eu também considero o aborto como um dos maiores atentados à vida inocente que se possam perpetrar: o aborto nunca poderia ser a solução dos problemas de ninguém. Todavia, como refere o Papa Francisco na Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate (GE), tal como é sagrada a vida do nascituro, “igualmente sagrada é a vida dos pobres que já nasceram e se debatem na miséria, no abandono, na exclusão, no tráfico de pessoas, na eutanásia encoberta de doentes e idosos privados de cuidados, nas novas formas de escravatura, e em todas as formas de descarte” (GE, 101). Quer isto dizer que a preocupação da Igreja por políticas que protejam o embrião ou o feto não se sobrepõe ao interesse por políticas de defesa e promoção da vida de todos os outros inocentes que vieram a este mundo e que não são respeitados no seu direito a uma vida digna. Isto porque a preocupação e o desejo da Igreja são os mesmos desejo e preocupação do seu Mestre, Jesus Cristo: “que todos tenham vida, e vida em abundância” (Jo 10,10). E, à luz do Mestre, tal como nos relatam os Evangelhos, desta vida hão-de participar prioritariamente os da periferia, os pobres, os excluídos e as crianças.

Não se trata de pôr esta noção mais abrangente de vida em contraposição ao aborto ou à eutanásia, mas de alargar a nossa compreensão quanto ao que significa ser “pró-vida”.

Com efeito, não se trata de pôr esta noção mais abrangente de vida em contraposição ao aborto ou à eutanásia, mas de alargar a nossa compreensão quanto ao que significa ser “pró-vida”. Quando não entendemos a defesa da vida em termos de cuidado concreto pelo outro, a começar pelo mais frágil, o aborto e a eutanásia correm o risco de se tornarem bandeiras ideológicas, critérios absolutos para aferir o nosso grau de “catolicidade”. Quando se trata de fazer opções políticas, se realmente somos cristãos pró-vida, por que razão se deve priorizar a criminalização do aborto ou da eutanásia em relação a políticas de acolhimento a quem procura os nossos países para fugir à miséria humana ou à violência, ou a políticas que promovam a dignidade de vida dos social e economicamente marginalizados ou descartados?

Na verdade, não se pode separar o problema da descriminalização do aborto e da eutanásia dos problemas causados por instituições e sistemas económicos que não respeitam o ambiente ou que não promovem a justa distribuição dos bens a nível local e mundial. Não se pode privilegiar a condenação da descriminalização do aborto e da eutanásia, em relação ao combate ao abuso de menores, à violência doméstica, e ao bullying. Não se pode separar o problema da descriminalização do aborto e da eutanásia do problema das altas taxas de suicídio em determinadas regiões do país ou entre os mais jovens. Não se pode apenas mostrar preocupação pelas vidas dos nascituros e doentes terminais, sem nos preocuparmos com as vidas dos idosos abandonados nas aldeias e cidades, da vida dos que precisam de cuidados de saúde gratuitos, mesmo que tenham entrado ilegalmente no país. Não se pode separar a promoção da vida humana presente e futura do respeito e cuidado com o meio ambiente e de um equilibrado uso dos recursos naturais. O cuidado pelo outro obriga-nos a considerarmos todas estas situações como igualmente prioritárias.

Voltando à carta dos bispos norte-americanos, pergunto-me – como o fizeram alguns dos bispos – se a “ameaça do aborto” é efetivamente a principal prioridade no que se refere à promoção da vida naquele país, ou se ela constitui uma importante questão ao lado de outras questões pró-vida. Numa sociedade na qual as posições têm tendência a polarizar-se, lamento que o episcopado norte-americano priorize o aborto (enquanto questão política) sobre outras questões de dignidade da vida humana igualmente prementes no seu país, como sejam o racismo, a xenofobia e as desigualdades sociais, a recusa em acolher migrantes que procuram nos EUA uma oportunidade para fugir à pobreza e à violência que podem conduzir à morte, o problema da crescente ostracização pública dos imigrantes ilegais, o fácil acesso a armas, ou a pena de morte ainda existente em alguns estados, para dar apenas alguns exemplos.

Nos tempos que correm, em que surgem forças políticas que se intitulam pró-vida, mas que parecem excluir do conceito de “vida” determinados seres humanos, parece-me importante voltar ao Evangelho para nos relembrar que a vida abundante que Jesus Cristo oferece é para todos, e se traduz no cuidado concreto por cada vida, a começar pelos inocentes, os marginalizados e os excluídos. E, por isso, mais do que nunca é necessário que, na nossa ação concreta e nas nossas escolhas políticas, saibamos dar prioridade ao cuidado pela vida dos nascituros e dos doentes terminais, mas igualmente ao cuidado pela vida dos que, já tendo nascido, não são respeitados na sua dignidade.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.