Cultura: soft skill ou hardcore?

A melhor definição de cultura que conheço era (e é) repetida frequentemente pela minha mãe: “Cultura é o que fica quando esquecemos tudo o que aprendemos”.

Sinto hoje o inverso da famosa angústia do escritor perante a página branca. Este é o último texto que escrevo como colaboradora da secção de Cultura e as ideias acotovelam-se na cabeça. Quero o impossível de dizer tudo o que não disse e que me passou pela cabeça dizer nestes três anos de Ponto SJ. Vamos lá.

A melhor definição de cultura que conheço era (e é) repetida frequentemente pela minha mãe: “Cultura é o que fica quando esquecemos tudo o que aprendemos”.

Acredito que, em situações normais, duas coisas aumentam à medida que mais coisas aprendemos: a noção do muito que não sabemos e o sedimento cultural resultante do processo de esquecimento. (Também acredito que aumenta a longevidade da qualidade da nossa vida intelectual, mas disso só tenho evidência empírica que não pode ser generalizada). Podemos, então, afirmar, de forma aliás bastante simplista, que mais cultura teremos quanto mais aprendermos. Acredito ainda que estamos a aprender cada vez que lemos um livro, que ouvimos música, que vemos um filme ou uma série, que vamos ao teatro, que visitamos um museu. Às vezes até pode ser um mau livro, uma péssima música, um filme ou série medíocres, um teatro desconchavado, um museu que nada nos diz. Mas se não formos, se não virmos, se não lermos, se não ouvirmos, nada aprenderemos.

Acredito ainda que estamos a aprender cada vez que lemos um livro, que ouvimos música, que vemos um filme ou uma série, que vamos ao teatro, que visitamos um museu.

E para que é que isso serve, a cultura?

O mundo é intertextual. E hipertextual. Cada vez mais hipertextual. Nunca tanto conteúdo foi produzido por minuto, num espectro de qualidade que vai do absurdamente mau (que encontra procura) ao sublimemente bom (do qual há oferta).

A capacidade de criar relações entre coisas aumenta com a cultura. E dessas relações nasce tantas vezes sentido, mais sentido, sentido acrescentado ao que já significa.

Um exemplo colorido: a expressão “histórias do arco da velha” ou “coisas do arco da velha” adjetiva coisas mirabolantes. O “arco da velha” é, afinal, o arco-íris da velha aliança que Deus estabeleceu com os homens quando baixaram as águas do dilúvio do qual apenas Noé, a sua família e os animais da arca se salvaram. Em crioulo de Cabo Verde, arco-íris diz-se “arco d’abêja”, fiel ao arco da Velha Aliança. Saber isto acrescenta alguma beleza à contemplação do arco-íris? Talvez não, mas acrescenta sentido, sentidos. Permite ir um bocadinho mais longe.

Um exemplo monocromático: o símbolo da Nike, atualmente avaliado em 25 mil milhões de dólares, foi desenhado por uma estudante de design logo no início da empresa qual mudou o nome associado a marca desportiva à deusa grega da vitória (Nice, dita Nike em inglês). A jovem Carolyn Davidson recebeu na altura 35 dólares pela tarefa mas nos anos 80 recebeu acções da valorizada Nike como uma “compensação” do seu trabalho. Vive até hoje dessas 17 horas de trabalho. O símbolo da Nike – o swoosh – é hoje o mais valioso logotipo em todo o mundo. Teria sido esta a história sem a inspiração das asas da Vitória de Samotrácia ou da estátua de Nice em Éfeso?

Cultivar a cultura – passe a desejada redundância – produz frutos em todos os campos. Não serão os médicos melhores médicos se nos seus consultórios ou gabinetes escolherem música adequada?  Não serão os juízes melhores juízes se tiverem lido romances que revelam a densidade da natureza humana? Não serão os professores melhores professores se não se cingirem ao manual ou à “sebenta”?

O nosso entendimento do mundo e a nossa forma de agir é influenciada pela cultura. Desde logo por aquela em que nascemos e crescemos – o verdadeiro “meio de cultura” (para trazer a cultura científica ao barulho). Mas também (e sobretudo?) pelo que vamos acrescentando ao nosso sedimento. Desde passarmos a integrar de forma mais série a dimensão ecológica no quotidiano porque se leu a Laudato Si e se aprecia o autor, a sentirmo-nos impelidos a saber mais sobre a 2ª Guerra Mundial ou sobre Aristides de Sousa Mendes porque vimos “A Lista de Schindler”. Ou pura e simplesmente desacelerarmos porque nos lembramos que “devagar se vai ao longe” ou decidirmos passar à ação porque nos lembramos da parábola dos talentos, sejamos ou não cristãos. Quanto somos capazes de extrair sentido do que nos rodeia ganhamos a capacidade de produzir sentido. Aplicando a cultura a questões concretas ou criando coisas novas a partir do que já existe, se a nossa natureza for criadora/criativa. Quantas horas de música terá ouvido Bach antes de compor os Concertos de Bradenburgo? Picasso, já com idade avançada, quando lhe perguntavam se achava bem cobrar milhões por obras que demorava poucos minutos a fazer respondia que não tinha demorado só alguns minutos. Tinha demorado 80 anos e alguns minutos.

Podemos também pensar a cultura na sua dimensão de inutilidade, no sentido de não produzir nenhum efeito prático que se possa avaliar ou sequer ver. Às vezes, a fruição cultural manifesta-se pelo êxtase que podemos sentir. “Soul”, possivelmente o melhor filme da Disney de todos os tempos, que infelizmente não estreou nos cinemas em Dezembro passado porque as salas estavam fechadas ou na iminência de fechar, tem uma magnífica ilustração destes momentos de êxtase. O filme é uma parábola sobre a vida depois da morte (e sobre o sentido da vida antes da morte). Esses momentos de êxtase aparecem como instantes que vivemos que nos fazem sentir o gosto da eternidade, que nos elevam. São espoletados pelos afetos, pelas relações, e também quando tocamos piano ou vemos uma pintura. A cultura toca a nossa mais profunda humanidade porque nos aproxima do absoluto.

A cultura toca a nossa mais profunda humanidade porque nos aproxima do absoluto.

A cultura da minha mãe sobre cultura levou-me a ir procurar o que possivelmente (ou se calhar não, tenho de lhe perguntar) ela já esqueceu – o autor da frase. André Malraux. Pelo caminho descobri que também escreveu que “a cultura é a soma de todas as formas de arte, amor e pensamento que, ao longo dos séculos, permitiram ao homem ser menos escravo”. Quero ver se não me esqueço desta (há tanta coisa para aprender sobre os mecanismos da memória seletiva e como isso tem a ver com os sentimentos).

Desculpem o texto ser tão longo mas não tive tempo para ser breve. Lembro-me sempre desta frase quando me obrigo a reler os textos e a cortar palavras por respeito ao leitor. É atribuída ao Padre António Vieira, a Blaise Pascal, a Mark Twain, a Bernard Shaw… O mais provável é que a ideia original seja de algum pensador da Antiguidade Clássica. O Google não ajudou a tirar teimas porque a máquina não esquece nada daquilo que aprendeu.

 

PS: Recuperando outra pérola da cultura popular, “não há bem que sempre dure” (ou “mal que nunca acabe”!). É, pois, tempo de outros ocuparem este lugar.

Foi um enorme gosto e uma honra poder estar por aqui.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.