Conhecer e amar (com e sem acentos no teclado)

É devagarinho que se vai amando o que se começa a conhecer. Retirando prazer das semelhanças e espanto das diferenças. A recompensa da tarefa de conhecer é imensa. Um bom trabalho para férias.

Escrevo este texto jeito de balanço de fim de Verão. O esforço é grande, não só pelo próprio fim do Verão mas também porque escrevo num teclado inglês, avesso a todos os acentos. Dou por mim na terceira linha e já pensei em evitar várias palavras tentando fintar as marcas linguísticas. Pensamento que imediatamente tento debelar porque a minha intenção é precisamente falar sobre o contrário de facilitar (e, mesmo agora, a tentação de escrever “vontade” em vez de “intenção”, só para contrariar, escrevi “intenção” e “tentação, percebendo que à medida que as cedilhas e os tis e os acentos graves e agudos se multiplica, a tarefa se torna cada vez mais fácil porque vou deixando de recorrer às ferramentas do processador de texto para fazer o “insert symbol” que dá acesso às esquisitices do alfabeto latino para ir procurar diretamente ao meu texto os símbolos que já foram usados – e olhem, este “i” com acento agudo de “símbolos” foi inaugural e é agora tão mais fácil repetir a palavra “símbolos” porque  basta usar o comando “Ctrl C Ctrl V” e já está).

Ao procurar os símbolos de que vou precisando no “insert symbol”, passo pelo alfabeto grego e sorrio porque estou na Grécia neste fim de Verão e ainda ontem tentava aprender as letras gregas e sorria também ao pensar que o nosso alfabeto latino vai buscar o nome às primeiras letras do alfabeto grego, que raio de coisa. À medida que vou avançando, deixo de ver as letras gregas porque o computador, sabemos bem, também aprende e quer-me facilitar a vida, levando-me diretamente ao conjunto de símbolos que eu estou a usar com mais frequência. E este texto a querer falar de não facilitar a vida e tudo à volta a dar-me sinais contrários. Entretanto, aciono a escrita inteligente em português e já sou eu própria a facilitar-me a vida. (Mas ainda bem que não me lembrei logo porque a lentidão e a metáfora deram jeito à prosa).

E porque estou na Grecia (afinal a escrita não é assim tao inteligente…)

E porque estou na Grécia e porque quero falar de certas coisas, lembrei-me de um verso do “Canto Diurno” de Fiama Hasse Brandão:

Conhecer é amar, disse o divino
Platão ou outro filósofo antigo.

Devagarinho, ponho-me a tentar aprender o alfabeto grego. Para conhecer os sons, adivinhar as palavras, desvendar letreiros na rua, articular sentidos. Muito devagarinho, como uma criança que começa a juntar sílabas e se encanta com o resultado.

Clara Almeida Santos

Não conhecia a Grécia (e ainda não conheço, mas antes deste Verão conhecia muitíssimo menos). Vim para o batismo de um sobrinho. A cerimónia foi no rito cristão ortodoxo, naturalmente. Sem perceber grego e sabendo pouco sobre a Igreja ortodoxa, percebi o momento da profissão da fé comum, a renúncia ao mal, as palavras que herdámos do grego. Reconheci os sinais da água, do óleo e da luz que, sendo diferentes na forma, são iguais na essência. Três dias depois, cristão de pleno direito, regressou à igreja para comungar pela primeira vez. E logo nas duas espécies. Pensei como faz sentido que assim seja. E isto tudo acontece a praticamente dez quilómetros do local onde S. Paulo fundou a primeira igreja cristã da Europa – em Fillipos, hoje Kavala – cerca de 50 anos depois do nascimento de Cristo. Aqui foi batizada a seu pedido Lídia, hoje santa, depois de ouvir as palavras de S. Paulo. Lídia é possivelmente a primeira mulher cristã na Europa.

Devagarinho, ponho-me a tentar aprender o alfabeto grego. Para conhecer os sons, adivinhar as palavras, desvendar letreiros na rua, articular sentidos. Muito devagarinho, como uma criança que começa a juntar sílabas e se encanta com o resultado.

E é devagarinho que se vai amando o que se começa a conhecer. Quando a semântica surge da sintaxe e novos mundos se abrem. Retirando prazer das semelhanças e espanto das diferenças. Conhecer dá um bocadinho de trabalho mas a recompensa é imensa.

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.